Teatro erguido com vaquinha pode ser obrigado a ser demolido
Contadores de Mentira, trupe que atua há 28 anos em Suzano, vive embate com prefeitura que cedeu área gratuitamente para atividades do grupo
Um dos mais tradicionais grupos de teatro da região metropolitana de São Paulo, o Contadores de Mentira, da cidade de Suzano, corre o risco de ser obrigado a demolir o teatro que ergueu e encerrar as suas atividades do grupo após 28 anos de estrada. Eles construíram o espaço onde desenvolvem as suas atividades numa área cedida pela prefeitura. Agora, a administração municipal informou que precisará do terreno para ampliar uma unidade de saúde localizada ao lado do teatro. Entretanto, um estudo elaborado pela própria prefeitura e obtido pelo grupo não abrange a área onde a sede da trupe foi construída. Os representantes da associação que gere o equipamento cultural dizem permitir que o teatro seja usado também para reuniões de movimentos sociais diversos, o que teria desagradado a administração municipal, fato que a gestão do prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL) nega (leia mais abaixo).
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“Somos um grupo que sempre se posicionou criticamente. Recebemos aqui pessoas que lutam por moradia, feministas e população LGBTQIA+, entre outros que trazem pautas afirmativas diversas”, afirma Daniele Santana, 36 anos, presidente da Instituição Associação de Cultura e Cidadania Contadores de Mentira, gestora da trupe.
Há cinco anos eles tiveram a permissão do prefeito Ashiuchi para ocupar o terreno público de 951 metros quadrados e, por meio de doações, vaquinhas, e uso de materiais reciclados montaram o seu teatro. O decreto de 2018 prevê a possibilidade de renovação, entretanto, eles receberam um ofício assinado pelo vice-prefeito Walmir Pinto (PV), que à época respondia pelo cargo de prefeito, informando que a ampliação do prazo não seria possível e deveriam deixar o espaço a partir do dia 1º de agosto. O documento cita apenas que estavam sendo feitos estudos para ampliação de uma unidade básica de saúde ao lado do teatro. (cópia abaixo)
Daniele diz que legalmente não há nada que obrigue a prefeitura a renovar o prazo, embora o decreto cite essa possibilidade, porém, diz não entender por qual motivo o teatro não pode permanecer onde está já que desenvolveu mais de 300 atividades (nos cálculos da trupe), muitas delas gratuitas à população. O documento de 800 páginas pode ser conferido neste link. Daniele diz também que um novo prazo de cinco anos ou mais se faz necessário já que eles tiveram pouco tempo para desenvolver as atividades devido à pandemia de Covid-19. “Em 2018 construímos alguma coisa, no começo de 2019, quando íamos inaugurar parcialmente, tivemos que fechar. Voltamos on-line em 2021 e praticamente só retomamos em 2022”, diz.
Vários artistas criticaram a decisão da prefeitura e foram às redes sociais apoiar o grupo. Além de apresentações locais, o Contadores de Mentira também mantém uma carreira internacional, excursionando por vários países para apresentar as suas montagens. Um dos apoiadores é o diretor italiano Eugenio Barba, um dos mais respeitados da Europa. (vídeo abaixo) Além do apoio dos artistas, um abaixo-assinado com cerca de 2 000 assinaturas de moradores da região pedem a permanência do grupo na região.
Após a repercussão negativa, a prefeitura permitiu que o prazo fosse ampliado em seis meses, prazo que a trupe considera muito curto e que não possibilita iniciar novos projetos. Além disso, o decreto publicado no Diário Oficial Eletrônico do Município de Suzano coloca uma série de exigências que não existiam na permissão anterior, tais como a de não usar o espaço para atividades que não sejam ligadas ao meio cultural; não fazer obras nem melhorias sem o consentimento da administração municipal; emitir relatórios fiscais, deixar o terreno livre ao término do prazo e permitir que um fiscal vá até o local para averiguar se todas as exigências estão sendo cumpridas. Para os representantes da associação que gere o espaço, o documento é absurdo já que exige prestação fiscal mesmo que o grupo não seja subvencionado pela prefeitura para as suas atividades. Para eles, na prática, o teatro onde foram investidos 450 000 reais terá de vir abaixo.
Outra atitude que vem gerando críticas é o fato de que a prefeitura vem notificando extrajudicialmente todos aqueles que já postaram apoio ao grupo via redes sociais. O documento cita que as informações sobre a permissão de uso e diz que a postagem deve ser retirada do ar. (cópia abaixo).
O que diz a prefeitura
A gestão do prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL) informou, em nota assinada pela secretaria de Cultura, que as contrapartidas foram propostas pelo próprio grupo, e constam no processo administrativo que resultou na permissão de uso. “A permissão do terreno enseja naturalmente em contrapartidas do permissionário em benefício da sociedade, as quais, inclusive, foram propostas pelo próprio grupo”, diz a nota, afirmando que a administração não repassa valores financeiros para manutenção do grupo. A informação de que o próprio grupo propôs contrapartidas no primeiro decreto é rechaçada pela associação que gere a trupe.
Segundo a prefeitura, não houve a emissão de ordem de despejo, “mesmo porque tal medida é de competência do Poder Judiciário.” Questionada sobre o relatório de atividades, a secretaria comandada por Walmir Pinto (PV) afirmou que o documento se tratava de um portfólio, “não demonstrando a execução das propostas indicadas pelo grupo em benefício à população”, informa o trecho do documento.
Em relação ao prazo suplementar de seis meses concedido ao grupo, a prefeitura informou que ele foi definido pela Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos para que a “instituição tenha tempo hábil para a confecção de uma prestação de contas. E caso ocorra à contento, ocorrerá a renovação, que pode ser feita de forma sucessiva”, informa.
“O novo prazo estabelecido faz referência à falta de prestação de contas. Houve, inclusive, um esforço do poder público municipal, por meio das análises mencionadas, para que o grupo não ficasse desassistido sem um espaço para atuar”, diz outro trecho da nota.
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A gestão também diz que a fiscalização não é nenhum tipo de censura prévia, mas sim uma forma de exercer “seu papel fiscalizatório”.
A pasta disse ainda que o grupo Contadores de Mentira é o único de cunho cultural a receber esse tipo de benefício na cidade. “É importante ressaltar também que a Secretaria de Cultura tem feito um estudo para a abertura de um novo espaço multiuso que possa ser utilizado pelas demais entidades culturais do município.” Por fim, a prefeitura informa que a trupe em nenhum manifestou seu posicionamento oficialmente à Prefeitura de Suzano, “que só soube de toda a situação causada pelo mesmo por meio de publicações em redes sociais.” Documentos fornecidos pelo grupo teatral contradizem essa informação.