Cultivo de horta vira aula para jovens e adultos no colégio Santa Cruz
No trato com a terra quem vira professor são os estudantes; atividade simboliza resgate para muitos que já tiveram experiência no campo
Desde criança, ainda quando morava em uma fazenda em Ituaçu, na Bahia, o sonho do feirante Gildásio Marques Vilarim, 74 anos, era ser agrônomo. Depois de cursar apenas os primeiros quatro anos do ensino, ele precisou trabalhar para ajudar a família e então interrompeu os estudos. Recentemente voltou aos bancos escolares e, numa das aulas, voltou a ter contato com a terra, reacendendo assim a sua esperança de concretizar o antigo sonho. “Eu já trabalhei a vida inteira e formei os meus dois filhos em direito. Tenho um sobrinho que é agrônomo e agora eu vou estudar para fazer agronomia e voltar para a Bahia, a minha terrinha.”
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Gildásio é um dos 530 alunos matriculados no EJA (Educação de Jovens e Adultos) do tradicional Colégio Santa Cruz, no Alto de Pinheiros, Zona Oeste da capital. Essa modalidade de ensino é disponibilizada para quem não completou o ensino fundamental (do primeiro ao nono ano) na idade certa. No caso do Santa Cruz, ele é oferecido há 48 anos no período noturno, e é totalmente grátis. A lida com a horta, que os próprios alunos preferem chamar de roçado, integra o projeto pedagógico da instituição e é feita semestralmente a cada turma de sessenta alunos, em média. A demanda surgiu em 2018, após a direção da unidade sugerir que eles discutissem a temática da terra. “A ideia de colocar em prática o que discutíamos em sala de aula veio dos próprios alunos. Fizemos uma cartinha e encaminhamos à direção”, afirma a professora Maria Lygia Carvalho Motta, 60. Pedido feito, pedido aceito. A direção do colégio não apenas permitiu que os alunos usassem o terreno de cerca de 200 metros quadrados localizado entre as salas de aula como também forneceu itens como pás, enxadas e adubo, para que eles pudessem plantar o que quisessem. E lá, fora da sala de aula, no roçado, a professora Maria Lygia vira aluna. “Muitos possuem bom conhecimento da manipulação da terra. E é um saber que eles têm e precisa ser disseminado.”
Apesar de a professora dizer que o pedido dos alunos foi coletivo, José Patrício Santos, de 53 anos, afirma ter sido ele quem deu a ideia. Natural de Solânea, na Paraíba, José Patrício saiu cedo de casa para trabalhar na cultura da soja, milho e algodão na cidade de Quirinópolis, em Goiás. “Eu tive que ajudar o meu pai para criar os meus outros irmãos e depois não consegui mais estudar.” Ele mora nos fundos de uma loja de decoração na Vila Leopoldina, na Zona Oeste, onde trabalha como ajudante geral e diz que sempre sentiu falta de lidar com a terra. “Quem já mexeu com a agricultura sempre pensa em plantar.” José afirma que não vê a hora de colher as espigas de milho para reunir a turma e fazer pamonhas. No que depender da experiência da diarista Maria Gorete Costa Gomes, de 45 anos, que já trabalhou na roça quando criança, a safra do milho no terreno do Santa Cruz será farta. “Se eu pegar a semente do milho da mão, eu sei ver se vai dar es- piga boa ou não. E, além disso, tem os se- gredos de como fazer a cova para colocar a semente, a distância entre elas, tudo isso.”
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Para o professor Roberto Catelli Júnior, 56, diretor dos cursos noturnos do Santa Cruz, essa prática pedagógica é o mais puro suco dos ensinamentos de Paulo Freire. “Dialoga muito (com Paulo Freire) no sentido de estabelecer uma conexão com as práticas constituídas pelos sujeitos ao longo da vida”, explica Catelli.
As fotos desta reportagem foram feitas quando os alunos se reuniram para iniciar mais um ciclo no roçado. Antes de jogar as sementes de milho na terra, porém, eles fizeram uma assembleia para decidir o que iriam plantar, assim como já ocorreu em outras seis oportunidades. Do pequeno roçado eles já colheram mandioca, batata-doce, feijão, abóbora e hortaliças diversas, tudo compartilhado entre eles. Os alunos, em sua maioria pessoas da faixa etária de 40 a 65 anos, além de não pagar pelos estudos, recebem uma refeição e têm subsídio para o transporte. Eles podem usufruir de todos os equipamentos do colégio da mesma forma que os outros cerca de 2 600 estudantes do ensino regular, que pagam, em média, 5 600 reais de mensalidade. A maior parte dos alunos do EJA chegou lá no “boca a boca”, muitos deles indicados por atuais e ex-alunos do Santa Cruz, ou mesmo por funcionários. Antes de serem admitidos, passam por uma espécie de entrevista e um teste simples. Como a proposta do roçado é pedagógica, a participação é obrigatória e feita em forma de revezamento.
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de abril de 2023, edição nº 2839