“Se a igreja evangélica não mudar e aceitar os gays, sofrerá um êxodo de fiéis”
A história de amor das pastoras Lanna e Rosania, que abriram uma igreja inclusiva no centro de São Paulo
“Quando conheci a Rosania, em 2002, eu já tinha vivido um relacionamento gay. Ela, não. Eu havia namorado uma mulher na juventude, mas tinha me convencido de que aquilo era um pecado. Fazia sete anos que havia ‘me curado’ e, após virar pastora evangélica, passei a pregar sobre a ‘cura gay’. Estava casada com um homem e tínhamos um filho. A Rosania também era casada. Ela era pastora de uma igreja em Boston, nos Estados Unidos, onde cantava nos cultos. Era muito conhecida na comunidade hispânica, tem uma voz linda. Fui, então, ministrar cultos e palestras em igrejas americanas. Ela assistiu a um desses cultos e, ao final, nos encontramos em uma sala no subsolo da igreja. A conversa fluiu e nasceu uma amizade.
Naquela época, eu estava com problemas no casamento. Não era feliz, minha autoestima era péssima. Por me forçar a ser ‘ex-gay’, sofria todos os dias.
Depois do primeiro encontro, voltei ao Brasil e a gente passou a se falar frequentemente pelo telefone. Um dia, tive uma intuição e liguei para a Rosania. Quando ela atendeu, não falei nem ‘oi’. Disse, de cara: ‘Você sabia que eu te amo muito?’. No primeiro momento, ela ficou muda. Após aquela conversa, entendemos que existia uma aliança de alma entre nós. Mas ainda demoraria para termos um relacionamento amoroso.
Nos meses seguintes, eu me vi novamente lutando contra a minha vontade. Voltei a ter a crença de que aquele amor era um sentimento a ser combatido. Ao mesmo tempo, a Rosania começou a perceber meu interesse. Eu ficava nervosa se um homem desse em cima dela, abrisse a porta do carro para ela entrar… Um dia, estávamos dentro de um carro, em Nova York, esperando amigas fazerem compras em um supermercado, quando ela me disse: ‘Precisamos conversar, né?’. Ela, então, me falou que estava gostando de mim de uma forma diferente. Fiquei surpresa. Nunca imaginei que uma pessoa tão linda, que eu admirava tanto, pudesse gostar de mim. Era uma noite fria, em janeiro de 2003. Foi nessa época que nos beijamos pela primeira vez.
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A história vazou e passamos a enfrentar um forte preconceito na igreja. Pouco depois, eu me separei. A Rosania, porém, seguiu casada até o fim de 2008. Ao longo de todos aqueles anos, a gente se encontrava eventualmente, mas tentávamos lutar contra o nosso sentimento. Tudo mudou após eu sofrer um grave acidente.
Em 2006, dormi ao volante enquanto dirigia em uma estrada americana. Quebrei quatro costelas, dilacerei meu fígado, passei por nove cirurgias, fiquei em coma. Foram 42 dias no hospital. Nesse período, tive uma experiência com Deus. No coma, eu me via dentro de um quarto muito branco e sentia a presença de Deus ali. Não podia vê-lo, mas ouvia sua voz. Ele disse: ‘Minha filha, você quer ir comigo ou quer ficar?’. Aquilo me fez compreender duas coisas. A primeira é que Deus me tinha como ‘filha’, mesmo eu sendo gay. A segunda é que, quando morresse, eu iria para o céu, não para o inferno, como temia. Após me recuperar, eu e Rosania decidimos que iríamos escrever uma história juntas.
Rosania voltou ao Brasil. Nós nos casamos em 2013. Em 2011, abrimos uma igreja inclusiva no centro de São Paulo, chamada Cidade de Refúgio. Hoje, temos 2 000 membros em nossa sede, além de outras dezenove igrejas pelo Brasil e uma em Portugal. Na pandemia, criamos uma igreja virtual e crescemos muito. Agora temos 5 000 membros, mais que o triplo de um ano atrás. A imensa maioria é de homossexuais que eram crentes e tinham deixado suas igrejas por se sentirem rejeitados. Quase nenhuma igreja evangélica aceita a homossexualidade. Se os pastores não fizerem uma reforma para atualizar a leitura da Bíblia sobre os gays e o papel das mulheres, vão sofrer um êxodo de fiéis.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 09 de junho de 2021, edição nº 2741