O professor que encarna o Pikachu na Liberdade: “Já consegui tirar 9 000 reais”
Renato Sousa trabalha até doze horas por dia, relata ter sofrido agressões e humilhações, mas também vive alegrias com o ofício
Tradicional reduto oriental paulistano, o bairro da Liberdade, no centro, recebe diariamente milhares de pessoas que buscam por alimentos, roupas, acessórios, objetos de decoração, quadrinhos e itens para cozinha. São centenas de mercadinhos, lojas especializadas em personagens japoneses, galerias, ambulantes e bancas.
Desde julho do ano passado, se juntou à paisagem, às vezes caótica, de tanto movimento, um sorridente boneco inflável de 2,1 metros de altura que faz a alegria da criançada, de jovens e (por que não?) de adultos. Normalmente presente em camisetas, bonés, broches, bandanas, livros e mais recentemente no celular, o elétrico Pikachu é um dos favoritos da turma dos animes, como são chamadas as produções animadas japonesas. Não é incomum ver pessoas fantasiadas com figuras orientais por lá, mas nenhuma delas têm feito tanto sucesso no pedaço quanto o Pikachu de “carne e osso” que dá expediente aos fins de semana no Viaduto Cidade de Osaka, bem em cima da Ligação Leste-Oeste, uma das mais movimentadas da cidade.
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Vestido pelo professor de inglês Renato Sousa, 49, o Pikachu inflável da Liberdade dança, pula, abre os braços, abraça, tira fotos e está sempre sorrindo. Com exceção desse último gesto, que está estampado na fantasia, os outros movimentos são todos feitos por Renato, que nem sempre vive situações para expressar alegria. “Uma vez um pai estava de mãos dadas com uma menina que devia ter uns 5 anos. Quando ela viu o Pikachu, começou a gritar de felicidade, mas o homem a repreendeu e disse para ela não chegar perto de mim. Em questão de segundos ela conseguiu se soltar e veio me abraçar. Depois disso me falou: ‘Pikachu, você não quer ser meu pai?’. Pelo momento, pela circunstância, fiquei num estado de dormência. Vi uma criança sofrendo. E o pai atropelando a situação de forma grosseira. Ela fugiu, me abraçou e falou. Aquilo me desmontou. Continuei tirando fotos, mas chorei”, conta.
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Se no episódio com a menina a questão emocional ficou abalada, em outros casos sua integridade física foi posta em risco. “Já fui agredido três vezes e espetado em duas situações. Sim, espetado por alguém que queria rasgar a roupa. E às vezes a pessoa passa com o cigarro aceso para tentar estragar a fantasia. Também já fui chutado nas costas por alguém que luta capoeira. Foi um golpe. A alegação é sempre que a pessoa não sabia que tinha gente lá dentro. Mas ninguém vai lá e chuta um boneco inflável do posto. Ou chuta?”.
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Mas humilhações e agressões são exceções. Na maior parte do tempo, as demonstrações de carinho vêm de onde ele menos espera, como as de motoristas e motociclistas que passam pela Ligação Leste-Oeste e buzinam (e gritam) para o feliz e sorridente personagem. Seu trabalho também foi reconhecido por quem trabalha no pedaço. “No fim do ano, alguns comerciantes vieram me agradecer, me deram panetone, dinheiro, em reconhecimento. Um deles me falou que passou a vender mais Pokémons depois que comecei a trabalhar por ali.”
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Como todo trabalho artístico de rua, o de Renato também depende exclusivamente da boa vontade de quem recebe o abraço, o sorriso ou a pose para a foto. Há um mês, ele criou um Pix (cuja chave é pikachudaliberdade@gmail.com) para ser um atrativo a mais para quem passa, mas nesse caso ainda não funcionou como ele queria. “Eu tenho um custo para estar lá. Eu sempre falo da importância da contribuição. Com o Pix, tem gente que está mentindo e fingindo que está digitando. Chega a ser constrangedor. Não quero estar lá cobrando pessoas. Tem trabalho, custo. Vejo artistas internacionais que são mais linha-dura. Eles surtam. Eu não vou surtar.”
Por dia, na baixa temporada, ele chega a arrecadar de 80 a 90 reais. No fim do ano passado, traçou uma meta de trabalho diário, de segunda a segunda, e os resultados foram surpreendentes. “Sou disciplinado com metas. Tinha dia que eu estava com dor, mas não tinha atingido a meta de 300 reais. Sempre trabalhei com metas. Sempre fui obcecado por compromissos. Consegui tirar 9 000 reais.”
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Quando o “dono” do Pikachu da Liberdade diz que tem um custo para estar lá, ele se refere a transporte e alimentação e à fantasia, que sai por 310 reais e é fabricada na China. Fora isso, há um pequeno motor que fica instalado na sua perna e é responsável por inflar o boneco. Apesar do valor baixo, de cerca de 25 reais, o equipamento não é encontrado facilmente por aqui e também é encomendado no exterior. Sua duração, em média de dois meses, obriga Sousa a adquirir algumas unidades para ter um estoque.
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Nascido em Guarulhos e atualmente morando em Osasco, Renato Sousa é solteiro, não tem filhos e vê um prazo de validade para o bichinho elétrico amarelo nas ruas do centro. “No máximo mais um ano, pois tenho outros projetos em mente: Robô Gigante e Fantomas”, diz, referindo-se a dois personagens de animes antigos do Japão. Mais famoso ainda, o Ultraseven, que começou a ser produzido nos anos 60 e se tornou uma das maiores séries desse segmento no país oriental, também faz parte de seus novos velhos planos. Ele já desfila pelas vias da Liberdade com a fantasia de seu herói favorito desde 2017 (a introdução no mundo de cosplay começou bem antes, em 1994, com uma roupa feita de pano). “Quis resgatar esse passado. Olhei para o lado, para as minhas coleções e quis colocar para fora o meu espírito nostálgico. Nostalgia é um elemento emocional muito grande.”
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A troca de Ultraseven por Pikachu foi ocasionada pela alta exposição que o primeiro provocava. “Eu ficava mais exposto por causa da pandemia e preferi o Pikachu para ficar mais protegido. Uso duas máscaras por baixo da fantasia.” A mudança de personagem que faz muito mais sucesso com o público do que o anterior não fez e não fará Renato esquecer sua origem. “Eu me identifico muito com o Ultraseven desde criança. Foi uma espécie de conforto materno e paterno. Naquilo que não consegui de referência em família eu me identifiquei com ele. Isso também aconteceu com muitas pessoas com quem converso, seja com Ultraseven, seja com outros mais novos, como Jaspion e Spectroman”, diz, emocionado. “São temas de maturidade, de desenvolvimento e caráter. Eles falavam de problemas atuais, ecológicos, políticos, de identidade moral. Tudo estava escondido lá por décadas. O Ultraseven sempre foi a minha válvula de escape. Aquele pai que eu não tive, aquele herói, altruísta, que sacrifica a própria vida para salvar os outros.”
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Enquanto não se decide sobre seu futuro como cosplayer (pessoas que se transformam em personagens), Renato Sousa continua com aulas particulares de inglês (nunca parou de lecionar) e tem planos para desengavetar um projeto que parou no tempo. Por onze anos ele foi gerente de uma videolocadora e pretende voltar a trabalhar nesse segmento, também do século passado, assim como seu personagem de cabeceira. Com cerca de 20 000 filmes em casa, nos formatos VHS e DVD, quer abrir um espaço não para competir com o streaming, claro, mas para ser usado como área de convívio, com café e mesas para reunião. “O pai vai poder mostrar para o filho como funcionava um videocassete e um DVD. Podemos unir tecnologia aos sistemas antigos.” Tomara que não seja o pai que proibiu a menininha de abraçar o amável Pokémon.
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Publicado em VEJA São Paulo de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772