A Bolsa de Valores mudou: pregão ficou mais jovem, feminino e democrático
Pesquisa inédita e exclusiva revela o perfil dos paulistanos na B3, e especialistas explicam os motivos que levaram à renovação
Quem viveu os anos 1990 tem viva na memória uma imagem dos antigos pregões da Bolsa de Valores de São Paulo, atualmente chamada B3. Eram centenas de homens engravatados aos gritos, com telefones à mão, disputando a compra e venda de ações.
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“A bolsa era para poucos, coisa de rico. As pessoas ‘normais’ não sabiam nem como acessar o mercado, tampouco tinham dinheiro para pagar corretoras e operadores”, relembra Felipe Paiva, diretor de relacionamento com clientes da B3, funcionário da casa há 24 anos.
Bem, a cena está ultrapassada. Uma pesquisa inédita e exclusiva revela o atual perfil dos paulistanos que investem na bolsa — e traz um retrato surpreendente. Em poucos anos, o público ficou bem mais jovem, feminino e democrático, ao mesmo tempo que passou a investir valores menores e de forma mais complexa e sofisticada.
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A pesquisa, feita pela B3, mostra que São Paulo foi a primeira cidade a ultrapassar os 30% de participação feminina na bolsa, no início do ano. As mulheres são 30,51% dos investidores na capital paulista, enquanto a média nacional é de 25%. Apenas Belo Horizonte, no mês passado, atingiu o mesmo patamar (tem 30,03%).
“Nos nossos cursos, 80% do público são mulheres”, diz Nathalia Arcuri, influenciadora digital das finanças que tem 7,2 milhões de inscritos no canal Me Poupe! do YouTube, criado por ela em 2015. “Nas nossas redes sociais, elas representam 60% da audiência”, afirma a especialista.
É uma paisagem bem diferente daquela observada nos tempos dos antigos pregões — que deixaram de acontecer presencialmente na Bovespa em 2005, graças à tecnologia. “Você não via mulheres no mercado, nenhuma, zero. Nem como investidora, nem nas mesas de corretagem ou pregões”, conta Paiva.
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Hoje, elas são o filão mais ávido por informações de finanças, segundo diversos profissionais da área. “Para mim, foi uma surpresa. Achei que teria dificuldade em atrair mulheres para o curso, mas elas são 75% das alunas”, diz a economista e influenciadora Gabriela Chaves, identificada com a audiência das periferias de São Paulo.
“Viemos de uma cultura em que as mulheres não cuidavam do dinheiro da casa. Isso mudou: elas se informaram e cuidam até melhor que os homens”, completa Marina Gabriela, 26, sócia de uma consultoria de investimentos com 250 clientes no Campo Belo, na Zona Sul.
Engenheira de formação, Marina representa também outra mudança demográfica mostrada pela pesquisa: a maior presença de jovens nesse mercado. “Comecei investindo 100 reais em 2017, que juntei vendendo docinhos na faculdade. Aos poucos, tirei todo o dinheiro que tinha na poupança e coloquei na bolsa”, ela conta.
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A turma de menos de 40 anos, rara até a década passada, agora forma a maioria dos investidores de São Paulo. Ela representa 53,6% dos paulistanos na B3. Vale notar: uma fatia de 9,1% ainda não completou 25 anos.
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“Quero investir todo mês na bolsa e um dia cobrir meu custo de vida só com os rendimentos”, diz o analista financeiro Rafael Tascone Júnior, 24, que
aposta em ações desde que recebeu o primeiro salário de estagiário.
Se por um lado a presença de jovens indica um mercado saudável, semelhante à realidade dos países desenvolvidos, por outro a “maré millennial” traz inquietações aos especialistas.
“Houve um boom de jovens atraídos pelos influenciadores digitais. Acho preocupante porque muitos tentam imitar esses influenciadores. Acabam tendo um perfil de risco elevado, um ímpeto especulativo alto”, afirma o consultor financeiro Gustavo Cerbasi, 48, uma espécie de influenciador primordial do mundo financeiro.
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Em 2004, ele lançou o best-seller Casais Inteligentes Enriquecem Juntos, um “viral” da era analógica que vendeu 1,6 milhão de exemplares e deu origem à série de filmes Até que a Sorte Nos Separe. “Ainda falta um pouco de método para a nova geração: antes de pensar em ganhos mirabolantes, eles precisam fazer reservas de emergência e ter planos de aposentadoria”, ele acredita.
Um fator que explica as mudanças na B3 é a explosão no número de investidores após 2020. O mercado brasileiro tinha por volta de 100 000 pessoas no início dos anos 2000.
Teve uma alta abrupta em 2007, quando subiu para 800 000 usuários, graças a plataformas tecnológicas tanto de grandes bancos quanto de fintechs, que baratearam o acesso às ações. Mas estacionou nesse patamar até dois anos atrás. Veio, então, o salto: a B3 tem, no momento, 4,4 milhões de investidores pessoa física.
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“Um conjunto de fatos justifica essa ascensão rápida: as corretoras abraçaram as novas tecnologias para ganhar escala, a queda na taxa de juros fez despencar o rendimento das aplicações conservadoras e o volume de con teúdos sobre finanças na internet disparou”, explica o economista Victor Vianna, 38, investidor da bolsa nos últimos vinte anos.
A multiplicação de público na B3, claro, a tornou menos elitista e mais parecida com a demografia do Brasil de verdade.
A era de ouro dos influenciadores, na opinião dos profissionais do mercado, é um dos principais motivos do tsunami de novos CPFs na B3. O caso de Nathalia Arcuri, sozinho, mostra o alcance desse nicho: ela foi considerada a terceira celebridade brasileira mais influente de 2022 pelo Instituto Ipsos, atrás apenas da modelo Gisele Bündchen e da cantora Iza.
A multiplicação de vídeos sobre investimentos na
internet, com linguagem mais acessível, ajudou a trazer mais
jovens à B3 nos últimos anos
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Seu canal de YouTube passa de 56 milhões de horas vistas. Se trouxe uma linguagem mais acessível sobre finanças, esse fenômeno também deixa ressabiados os economistas.
“Há uma apoteose do conhecimento plastificado, dizendo que investir é fácil, que tal curso vai deixá-lo apto a negociar na bolsa. Vejo as campanhas e fico assustado. Alguns youtubers tornam o tema superficial demais, dando uma falsa ilusão de preparo aos investidores pequenos”, avalia Vianna.
Um dos impactos mais visíveis da popularização da B3 é a queda acentuada nos valores investidos individualmente. A pesquisa feita para Veja SP mostra que, em apenas um ano, o tamanho médio da primeira aplicação dos paulistanos desabou de 959 para 125 reais. Definitivamente, não é mais “coisa de rico”.
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“Nunca pensei que poderia investir com o salário de professora”, diz Camila Matos, 31, que dá aulas em cursinhos pré-vestibular e escolas particulares. “Comecei há oito meses no mercado de ações, surpresa por saber que dava para comprar com pouquinho”, ela conta.
Os papéis das empresas, porém, ainda podem ser uma experiência radical demais para os iniciantes. “Fiquei frustrada com algumas quedas e migrei em parte para outros produtos da B3, como os fundos imobiliários e a renda fixa”, diz. No total aplicado por pessoa, a média da cidade caiu de 23 000 para 7 700 reais entre 2016 e julho passado.
Para os especialistas, os aportes menores mostram que o atual público é afeito ao “aprender na prática”. “Os jovens entram com 40 reais, quase um valor para teste. A nova geração é acostumada a aprender fazendo”, afirma Paiva, da B3.
“Cresceu muito o número de pessoas na B3 após 2020. As causas são a queda dos juros, as tecnologias mais acessíveis e o boom dos influenciadores.”
Victor Vianna, economista
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Ao mesmo tempo, a pesquisa mostra que as opções dessa nova turma são mais sofisticadas. Hoje, o número de paulistanos que investem em quatro ou mais ações é quase o dobro do daqueles que têm apenas uma empresa no portfólio — antigamente, era comum ver pessoas que “tinham Vale”
ou “colocavam o décimo terceiro salário em Petrobras”, sem maiores diversificações.
“Comecei com Tesouro Direto, depois fui para debêntures, fundos imobiliários e agora ações do setor de energia”, diz a jornalista Isabel Franson, 26, autora do podcast PodPoupar.
“Vejo muitos jovens assistirem a vídeos e chegarem ao escritório cheios de ideias sobre produtos complexos — o que nem sempre é um bom sinal, porque podem ter riscos maiores”, completa a consultora Marina.
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Os novos tempos são de mudanças profundas na B3, elegantemente instalada logo acima do Vale do Anhangabaú. “Meu pai foi um dos raríssimos operadores negros na bolsa nos anos 1960”, relembra Felippe Guerra, 38.
“Invisto desde 2012. Sofri algumas perdas, uma de quase 10 000 reais. Hoje, não abro mão das notícias diárias para acompanhar a situação das empresas”, ele diz. “Dá para ganhar dinheiro, mas não existe milagre”, conclui.
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Publicado em VEJA São Paulo de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810