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Os flagras de desrespeito à quarentena, do Morumbi ao Capão Redondo

A Vejinha percorre 700 quilômetros em SP e encontra aglomerações em todas as regiões, de encontro de carrões a churrasquinhos nas periferias

Por Pedro Carvalho, Sérgio Quintella
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h14 - Publicado em 22 Maio 2020, 06h00

No último domingo (17), dia de sol forte na cidade, enquanto cerca de dez pessoas se aglomeravam para um churrasco em uma via estreita da Brasilândia, o bairro com mais mortes provo cadas pelo coronavírus (156 até a terça 19), outra turma aproveitava o calor do outono para beber uma cervejinha na Praça Vinícius de Moraes, em frente ao Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi. Em comum, a ausência de máscara e o desrespeito ao distanciamento mínimo de 2 metros. Dezenas de situações como essas foram flagradas pela Vejinha entre os dias 14 e 17 de maio na capital. A reportagem percorreu aproximadamente 700 quilômetros de ruas, avenidas e vielas, o equivalente à distância entre São Paulo e Florianópolis, para revelar por que o índice de isolamento social tem se mantido abaixo de 60% por aqui. A principal constatação: enquanto a ocupação dos leitos hospitalares passa de 90%, parte significativa da população dá as costas às recomendações das autoridades de saúde. Ao mesmo tempo, o governador João Doria e o prefeito Bruno Covas tentam retardar um lockdown — por ora, não querem assumir os desgastes políticos e econômicos da medida, e apenas um superferiadão foi aprovado.

Um dos casos mais gritantes de desrespeito à quarentena ocorreu em um posto de combustível na Rodovia dos Bandeirantes, em Jundiaí. No domingo de manhã, centenas de curiosos, na maioria vindos da capital, se amontoaram ali para ver carrões fazer arrancadas, aceleradas e freadas, tão arriscadas quanto inconsequentes. Uma das estrelas do encontro foi o investidor Pedro Afonso, 22, que possui quase 90 000 seguidores no Instagram e costuma dar as caras em eventos desse tipo na Rua Colômbia e na Avenida Europa, nos Jardins, a bordo de uma BMW cor de laranja, ano 2014, avaliada em 110 000 reais. “Moro sozinho, mas, se morasse com minha mãe, do grupo de risco, iria me isolar. Eu me dou a liberdade de sair. Não estou sendo egoísta”, diz. Os encontros do Jardim Europa entraram na mira da Associação Ame Jardins, que ingressou na semana passada com uma representação no Ministério Público pedindo a apuração de responsabilidades pelos eventos. A Polícia Militar afirma que fez 24 barreiras no último mês no corredor Colômbia-Europa e apreendeu catorze veículos.

(Alexandre Battibugli/Veja SP)
(Pedro Afonso/Divulgação)

Outra turma que está no radar dos vizinhos é a dos frequentadores de um baile funk em Sapopemba, na Zona Leste. Moradores da Rua Lírio do Vale cansaram de perder noites em claro por causa do pancadão semanal no pedaço. No sábado (16), com a ajuda do time de futebol Unidos do Sapopemba, eles se juntaram e decidiram não permitir a aglomeração. “Avisamos que faríamos um cordão humano, mas a polícia montou barricadas antes”, relata uma moradora. Em diferentes comunidades, pessoas afirmam que os bailes funk “oficiais”, que reúnem milhares de participantes, estão interrompidos. Mas contam que basta alguém aumentar o som do carro para surgir um “baile informal” nesses locais.

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(Alexandre Battibugli / Reprodução WhatsApp/Veja SP)

Enquanto uns furam a quarentena para se divertir ou badernar, outros vão às ruas para levantar um dinheiro. Na quinta (14) e na sexta (15), as vias do centro produziam movimentos típicos dos tempos pré-pandemia. Na Rua Santa Efigênia, conhecida por lojas do ramo de eletrônicos, os ambulantes e locatários de estandes, obrigados a fechar as portas, usam o porta-malas dos carros como chamariz dos serviços. Na Praça da Sé, pelo menos uma centena de pessoas se amontoava na tradicional “feira do rolo”, em que produtos de procedência duvidosa são oferecidos. Apesar de muitos estarem com máscara, o risco de contágio é alto. “Usar máscara pode caracterizar uma falsa sensação de segurança”, afirma o infectologista Eder Gatti, do Instituto Emílio Ribas. “Se o tecido não tiver uma filtragem adequada, ou se a pessoa não tomar os cuidados de distanciamento, a proteção é inócua.”

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Quando se avança em direção às periferias, maior é a sensação de “vida normal” nas ruas. Comércios mantidos fechados nos bairros centrais, como lojas de roupas e calçados, funcionam normalmente — às vezes de portas cerradas até a metade como disfarce, noutras nem isso. No Capão Redondo, na Zona Sul, um sargento da Polícia Militar estacionado a poucos metros de uma loja de roupas aberta tenta justificar a cena: “Só agimos quando recebemos reclamação da prefeitura ou se acontece uma quebra da normalidade”, diz. “Nas periferias, os pequenos comerciantes têm maior vulnerabilidade de renda”, explica Jorge Abrahão, coordenador da Rede Nossa São Paulo e do Instituto Cidades Sustentáveis. “Para eles, trabalhar costuma ser uma questão de sobrevivência imediata”, afirma.

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Sem distinção de classe social, um tipo de atividade que funciona de maneira generalizada na cidade é o de cabeleireiros e salões de beleza (cujos serviços são considerados essenciais pelo governo federal, mas não liberados pelo estadual). Se na periferia basicamente todos os barbeiros funcionam normalmente, nos bairros mais nobres o WhatsApp é a principal forma de atrair a clientela de manicures e afins. “(Estamos atendendo) com hora marcada e só uma cliente por vez”, informa um salão do Alto de Pinheiros. Outro, em Higienópolis, voltado para a podologia, diz que faz somente “atendimentos de urgência”. Na Rua dos Pinheiros, um terceiro apela à vaidade das frequentadoras: “Estou entrando em contato apenas com clientes especiais como você. Nestas datas (apontadas na mensagem), nossas profissionais podem se deslocar e (…) manter ativa a sua autoestima”. Em nota, a prefeitura afirma que fechou, desde março, 403 estabelecimentos não essenciais que estavam abertos.

(Alexandre Battibugli/Veja SP)

A verdade é que, até o momento, São Paulo não viveu uma quarentena de fato. Em Buenos Aires, por exemplo, o isolamento decretado em 19 de março foi bem mais rigoroso. “Só podia sair de casa para fazer compras ou ir à farmácia mais próxima. Não era permitido andar de bicicleta, correr nem se deslocar sem permissões específicas”, conta Rodrigo Iturriaga, 47, morador da cidade — que tinha, até a semana passada, 160 mortes pelo coronavírus. Na Europa, as normas foram ainda mais draconianas. Ao ouvir que existe um “índice de adesão à quarentena” em São Paulo, o professor brasileiro Luiz Peres Neto, 39, que vive o isolamento em Barcelona, deixa escapar uma risada. “Nas cidades europeias, não existiu essa opção de não aderir. Você simplesmente acatava ou sofria as consequências — no caso da Espanha, multas que variavam de 600 a 30 000 euros”, explica. “A quarentena em São Paulo é a famosa ‘lei que não pegou’, tanto por uma desigualdade estrutural como pela comunicação desencontrada das autoridades”, ele diz. “Mesmo a nossa atual etapa de liberação da quarentena é muito, muito mais rígida que a fase de confinamento em São Paulo”, conclui.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 27 de maio de 202, edição 2688.

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