Pai acorrentado na Paulista obtém cirurgia nos EUA para filho
Desembargador determinou que o governo pague tratamento de bebê com doença rara em Miami; José Soares passou um mês amarrado ao prédio da Justiça
A Justiça determinou na noite desta sexta-feira (21) que o pequeno Samuel Soares dos Santos, de 1 ano e 7 meses, realize seu tratamento em Miami, nos Estados Unidos, com tudo pago pelo governo brasileiro. A União, que representa o Ministério da Saúde, tem dez dias para cumprir a determinação, mas ainda pode recorrer.
A criança sofre da síndrome de borden, que foi diagnosticada assim que ela nasceu. A doença provoca uma série de malformações no intestino, bexiga e estômago. Para ter chance de sobreviver, Samuel necessita de um transplante multivisceral e está inscrito na lista de espera desde março, porém o Brasil nunca fez esse tipo de cirurgia com sucesso em crianças e sua única chance seria o tratamento no exterior.
“Estão provados nos autos que o tratamento a que vem sendo submetido no Brasil por força de um acordo firmado [a União o submeteu a uma reabilitação intestinal em Porto Alegre] não tem trazido evolução em seu quadro clínico”, escreveu o desembargador federal Johonsom di Salvo em caráter liminar. “Embora o Brasil conte com programa de transplante multivisceral, sendo o Hospital Sírio Libanês credenciado para o transplante pediátrico, desde a implantação do programa em 2011 foram realizados sete transplantes em pacientes adultos, sendo que o único hospital credenciado para realizar transplante multivisceral pediátrico ainda não fez nenhum [procedimento] desta natureza (…) negar ao infante o tratamento cirúrgico de que necessita implica desrespeito às normas constitucionais que garantem o direito à saúde e à vida”.
“Deus ouviu nossas preces”, disse emocionado o pai José Elezoardo Gomes Soares, 26, em uma transmissão ao vivo na página no Facebook Ajude o Guerreiro Samuel ao lado da esposa Joseli Alves dos Santos, 34, com a criança nos braços. “Estou aqui ainda em choque, tremendo, com as mãos geladas, calafrio por dentro, até tomei um banho para ver se acalma. Estamos muito felizes e emocionados, mas ainda há um medo da União recorrer, mas Deus é maior”, disse ele a VEJA SÃO PAULO após saber da decisão.
Entre abril e maio, o carpinteiro Soares, morador do Jardim Ângela, na Zona Sul, protagonizou uma cena desesperadora para quem passava pela Avenida Paulista. Ele passou um mês acorrentado nas escadarias do prédio da Justiça Federal depois que parecer da União negou a transferência e o pagamento dos custos do tratamento do filho nos EUA.
“Estamos correndo contra o tempo. A expectativa de vida de crianças que nascem com essa doença é muito baixa e por isso fiz essa loucura”, disse o pai à reportagem de VEJA SÃO PAULO na ocasião.
O parecer que negava o tratamento no exterior, datado de 6 de março, fora assinado pela advogada Flavia Piscetta de Sousa Lima, que representa a União, e diz que “com a estimativa de um milhão de dólares para o tratamento de uma pessoa, 6 878 poderiam ser salvos no Brasil”. “Eu me senti um lixo ao ler isso, ao ver essa comparação. Em 2015 eles autorizaram a ida da Sofia [Gonçalves de Lacerda] para os Estados Unidos. A gente queria ter o mesmo direito”, relata. A bebê de 1 ano e oito meses sofria da mesma síndrome e teve cinco órgãos transplantados, mas morreu cinco meses mais tarde por conta de uma bactéria no pulmão. O Ministério da Saúde desembolsou 4,4 milhões de reais no procedimento.
O bebê deve ser encaminhado para o Jackson Memorial Hospital, em Miami, onde atua o maior especialista em transplantes multiviscerais da atualidade, o cirurgião brasileiro Rodrigo Vianna. “Somos o maior centro do mundo em procedimentos do tipo, fazendo 25 casos dessa complexidade por ano, com taxa de sobrevida de 83%, e tempo de espera na fila de seis meses para se conseguir os órgãos”, explica ele, que é coordenador do centro.
O PROCESSO
A batalha da família começou em 2016, quando entrou com uma ação judicial pedindo ajuda do Ministério da Saúde para cuidar do filho. Um acordo foi assinado e decidiu-se que o garoto seria transferido do Hospital São Paulo, na capital, para o Hospital das Clínicas de Porto Alegre, que dispõe de um centro de excelência em reabilitação intestinal. Após oito meses de tratamento, Samuel recebeu alta e voltou para casa para evitar infecções hospitalares – que já fizeram com que perdesse três das seis veias principais do corpo humano. Para realizar o transplante com sucesso, ele precisa ter ao menos duas veias em bom estado.
Samuel não come desde que nasceu – em vez disso, faz uso da alimentação parenteral. Ou seja, recebe os nutrientes diretamente na circulação sistêmica por meio de um cateter instalado numa veia do coração, sem necessitar do intestino. Dessa forma, defeca e urina apenas por meio de duas conexões criadas cirurgicamente, uma delas entre a bexiga e a pele da barriga.
Em fevereiro deste ano, a advogada voluntária da família, Paula Roberta de Morais Silva, entrou com um pedido de reconsideração da ação por identificar um descumprimento do acordo judicial. “Nesse tempo todo a criança ficou saindo e voltando do hospital umas quatro vezes, não teve o tratamento adequado e recebeu apenas 4.500 reais de ajuda”, diz. “Diante disso, a única solução que víamos era a transferência para o exterior”.
“A nutrição parenteral pode prolongar a vida de Samuel, só que o prognóstico de longo prazo para quem tem essa síndrome é reservado se não for feito o transplante”, argumenta o especialista do Jackson Memorial Hospital, Rodrigo Vianna.
No Brasil, a realização do transplante multivisceral foi aprovada em 2011 nos hospitais Albert Einstein e o das Clínicas da USP; na sequência, o Sírio Libanês também tornou-se apto. Porém, não há relato de transplantes pediátricos do tipo no país. A reportagem levantou essa questão com o Ministério da Saúde e também perguntou porque Samuel foi transferido para Porto Alegre se já existiam opções em São Paulo.
O órgão respondeu que “realiza acompanhamento de dezenas de crianças e proporciona a reabilitação intestinal (tratamento prévio ao transplante que pode, inclusive, evitá-lo), e outros tratamentos correlatos”. “É importante esclarecer que o transplante multivisceral é o último estágio de tratamento e somente pode ser considerado quando todas as demais terapias prévias e tratamentos possíveis falharem, por se tratar do procedimento de maior complexidade – uma vez que envolve vários órgãos – e pelos riscos que pode trazer ao paciente se não for feito o devido preparo antes”, diz o Ministério da Saúde, em nota.