Meu amigo é mal-humorado. Muito. Como consequência, e na verdade não dá para saber o que é consequência de quê, ele é também pessimista. Às vezes me pergunto o que me motiva nessa amizade, e acho que é isto: a capacidade cômica que ele tem de ver o mundo como uma sacanagem que fizeram com ele. Na semana passada fui visitá-lo no hospital, um cálculo castigava seu rim esquerdo. Já me recebeu de mão espalmada, avisando: “Eu estou péssimo, moléstia à parte!”.
Certas pessoas não poupam nem a si mesmas de uma piadinha cruel. Nelas, o hábito de um trocadilho, de um jogo de palavras, de uma troça acaba se tornando marca pessoal, como um jeito de andar ou um cacoete. O Ademir era assim, piadista, grandalhão, boa pessoa — e fumante. Um câncer pulmonar derrubou seu vigor, mas não o gosto pela piada. Já no caminho sem volta, resumiu para um amigo visitante a culpa de ter aspirado de cinquenta a sessenta cigarros diários: “É isso: morrendo e aprendendo”.
De perto ninguém é normal, diz-se. E tanta gente passa por normal no ambiente externo…
Por exemplo, o homem que fotografa camisas. Conheço-o há tantos anos e só no seu aniversário recente, quando ganhou duas, ele me revelou sua dedicação secreta. Talvez mais discreta do que secreta. Fotografa todas as suas camisas, desde rapaz, faz mais de cinquenta anos, e tem as imagens organizadas por ordem de aquisição e uso. Com data e notação do evento! Natal de 1950, presente de mamãe. Aniversário de 1973, presente de Tati. Posse do Itamar, 1992. Férias em Cancún, 2001. Até pouco tempo atrás eram 229 camisas. Quantas um homem tem na vida? Explica que seu “book” documenta estilo, evolução, gosto, ativa a memória. Surpreendi nele um olhar sentimental. Emociona-se ao mostrar a que sua filhinha lambuzou de chocolate na Páscoade 1980. Desconfia do meu olhar: “Acha maluquice?”. De jeito nenhum, respondo, é inveja de não ter tido essa ideia. De perto…
Entre os esquisitos modernos estão os que não têm celular, não querem ter. Confesso sem arrogância: sou um deles. Não é por nada, não, é que não preciso. Pessoas que não conseguem imaginar sua vida sem celular olham esses desligados com estranheza. Não sei bem de qual lado estão os estranhos.
Esquisitão mesmo era o tio da minha madrinha, que tinha em casa seu próprio caixão de defunto e o guardava em cima do guarda-roupa. Tirando isso, era um sujeito normal, contador de inesgotáveis casos. Mas, de perto… Era o que os meninos antigamente chamavam de velho, deveria andar por volta dos seus 60 anos. Fora caixeiro-viajante a vida inteira, daí o repertório de casos. Caixeiros-viajantes, meninos, eram vendedores que levavam pelo interior do Brasil os produtos de suas firmas, as novidades do comércio, brasileiras e estrangeiras, e viviam das comissões. Na época dele, nem previdência havia; quando ficavam velhos, eram dispensados e os que não tinham guardado dinheiro nas caixas de pensão iam morar de favor com os parentes. Tio Raimundo, como todos da casa o chamavam, fora morar com a sobrinha, casada com o irmão do meu pai. Explicava com delicadeza o motivo de ter o caixão em casa: “É para não dar trabalho”.
“Ora, tio”, emendou um dia o meu padrinho, irmão do meu pai, “para não dar trabalho mesmo o senhor vai ter de ir andando até a cova, carregando o seu caixão, e se deitar lá”. A esquisitice desse era a franqueza.
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