Neschling acumula funções no Municipal e recebe R$ 5,5 mi em 3 anos
Segundo CPI, o diretor artístico do Theatro Municipal escalava a si mesmo para récitas e concertos à frente da Orquestra Sinfônica Municipal
Notas fiscais entregues à CPI do Teatro Municipal na Câmara de Vereadores mostram que o diretor artístico da casa, John Neschling, escala a si mesmo para récitas e concertos à frente da Orquestra Sinfônica Municipal.
Responsável pela grade artística, é o próprio maestro quem define quantas vezes se apresentará. Na programação deste ano, por exemplo, o nome dele aparece 19 vezes, de um total de 36 concertos. Ambos os serviços chegam a custar 280 000 reais mensais. Em três anos, já são 5,5 milhões de reais.
+Símbolo paulistano, Teatro Municipal enfrenta crise
A autocontratação não é vetada pela Fundação Theatro Municipal, mas o acúmulo de funções, sim. De acordo com o estatuto, a “diretoria artística não pode ser ocupada por regentes dos corpos artísticos”, como a OSM. Na prática, isso quer dizer que Neschling não poderia ser diretor artístico e também regente da orquestra. Mas é o que informa o site da fundação.
O maestro diz que seu contrato prevê direção artística e regência.
À frente de ambos os cargos, Neschling tem autonomia para escolher quem se apresentará no Municipal. Essa atribuição é exclusiva porque outro item do estatuto não é seguido à risca: a atuação de um conselho que discuta e defina, em conjunto, a grade artística. Uma das notas obtidas pela reportagem deixa claro que essa função é centralizada no maestro.
Em outros teatros do mundo o acúmulo de funções é permitido, mas o salário pago por mês já inclui as regências que o maestro faz no teatro que dirige. Foi assim com o próprio Neschling em 2014 e 2015. Os contratos estabeleciam que o maestro teria de fazer ao menos 20 récitas por ano. O atual não estipula o número de regências, cita só “serviços artísticos” como objeto do acordo e apresenta uma programação que, segundo o texto, pode mudar.
+Ministério da Cultura rebate críticas de John Neschling
O salário fixo de Neschling, de 150 000 reais por mês, e suas decisões artísticas são alvo de investigação no Ministério Público Estadual (MPE). Os promotores apuram, entre outras coisas, por que o maestro recebe salário mesmo quando não está no Brasil – vereadores que compõem a CPI afirmam que ele passa de quatro a cinco meses no exterior – e por que contrata espetáculos do mesmo agente que o representa na Europa. Essa última condição é vetada no contrato vigente.
Neschling, no entanto, continua contratando espetáculos montados pelo agente Valentin Proczynski, que é um de seus empresários. Neste ano, o produtor já encenou no teatro dois espetáculos: Lady Macbeth e El Amor Brujo. É dele também o polêmico projeto Alma Brasileira, cancelado depois de a prefeitura ter pago 1 milhão de reais.
Para o vereador Ricardo Nunes (PMDB), da CPI, esse formato de contratação proporciona o que ele chama de “farra orquestrada do mau uso do dinheiro público”. “O maestro contrata quem quer, pelo valor que julga necessário (já que não existe licitação) e, como retribuição, é contratado pelas mesmas pessoas”, critica.
Os negócios firmados com Proczynski são investigados pelo MPE. O esquema teria desviado ao menos R$ 15 milhões do teatro, entre 2013 e 2015, por meio de espetáculos superfaturados e uso de notas frias. Ex-diretor-geral da fundação, José Luiz Herência é réu confesso. Ele assumiu ter desviado R$ 6 milhões e firmou acordo de delação, no qual acusa Neschling, o ex-diretor do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural (IBGC), William Nacked, e o secretário municipal de Comunicação, Nunzio Briguglio Filho, que negam envolvimento.
Contas
Contratado pelo Instituto Brasileiro de Gestão Cultural (IBGC), organização social que comanda o teatro, o maestro entrega mensalmente notas sobre os serviços prestados. Elas indicam os valores e o tipo de serviço. Há notas que mencionam récitas em meses em que Neschling não as realizou, segundo o site da fundação. A gestão Fernando Haddad (PT) não se manifestou sobre as notas e o acúmulo de funções do maestro.(Colaboraram Alexandre Hisayasu e João Luiz Sampaio)
Defesa
John Neschling afirmou, em entrevista por e-mail, que o contrato dele prevê direção artística e regência. Segundo o maestro, como diretor, ele “tem todo o interesse em reger a orquestra para implementar a qualidade que deseja” e pode fazer isso quantas vezes quiser. O maestro afirmou ainda que não recebe por récita, por isso, quanto mais vezes ele reger, mais econômico será.
Sobre o acúmulo ilegal de funções, Neschling negou. “Se a Fundação Theatro Municipal e o Instituto Brasileiro de Gestão Cultural descrevem as minhas funções de forma diferente à que está no contrato, não é minha responsabilidade. Meu trabalho obedece estritamente o estatuto”, afirmou.
Já em relação ao salário de 150 000 reais que recebe mensalmente, o músico disse que se “faz muito barulho em torno disso”. Segundo Neschling, um maestro nos Estados Unidos, em posição equivalente recebe entre 1,2 milhão e 1,7 milhão de dólares por ano, sem exclusividade.
O maestro justificou a forma de apresentação das notas fiscais. Segundo ele, o descritivo foi sempre orientado e feito de acordo com o IBGC, sob o comando inicialmente de William Nacked e, depois, do interventor nomeado pela Prefeitura, Paulo Dallari.
Sobre contratar seu agente como produtor do teatro, Neschling disse que não há conflito de interesse porque ele mesmo pagava pelos agenciamentos feitos por Valentin Proczynski. “Aliás, o fato de que Valentin é um dos meus agentes no exterior sempre foi do conhecimento de todos na Fundação Theatro Municipal e no IBGC”, diz.
Por fim, o músico afirma que a acusação de José Luiz Herência trata-se de uma “forma desesperada de proteger a família dele e os amigos envolvidos em seu esquema sujo”. Segundo e-mail enviado por Neschling, uma “minuciosa apuração realizada pela Controladoria-Geral do Município deixou claro que ele não teve nenhuma participação nos desvios perpetrados”.