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Símbolo paulistano, Teatro Municipal enfrenta crise

Intrigas, denúncias de corrupção e outros problemas da entidade, cuja administração foi posta sob intervenção da prefeitura

Por João Batista Jr. e Nataly Costa
Atualizado em 1 jun 2017, 16h18 - Publicado em 5 mar 2016, 00h00
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Desde sua fundação, em 1911, o Teatro Municipal brilha como um solista na Praça Ramos de Azevedo, no centro da capital. Seu figurino é o de um ícone arquitetônico eclético do século XX, que mistura estilos europeus como barroco e art nouveau; sua voz, a de personagens como a cigana Carmen ou o cavaleiro Lohengrin, das óperas de Georges Bizet e Richard Wagner. O enredo glorioso, porém, tem descambado para um dramalhão — não no palco, mas nas coxias.

Não bastassem as brigas e o clima pesado de bastidores (um ato à parte nessa história), o Municipal é cenário de graves denúncias de corrupção, em uma trama que envolve um rombo de 20 milhões de reais na contabilidade do teatro, notas fiscais superfaturadas, contratos de fachada e desvio de dinheiro público. O mais recente capítulo: no último dia 26, a prefeitura pôs a instituição sob intervenção por noventa dias.

John Neschling e Haddad
John Neschling e Haddad ()

Sai do poder, portanto, o Instituto Brasileiro de Gestão Cultural (IBGC), organização social comandada por William Nacked, designada pela prefeitura para dar autonomia financeira e administrativa ao teatro e que podia, por exemplo, realizar contratos sem a exigência de licitações. Cabia ao órgão pagar salários, elencar serviços e escolher as apresentações, sempre com a anuência do então diretor-geral da casa, José Luiz Herencia (atribuições que, na fase atual, ficaram a cargo do interventor Paulo Dallari, funcionário da prefeitura).

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Fecha a tríade do comando do prédio, na função de diretor artístico, o maestro John Neschling, responsável pelas encenações, da contratação de bailarinos à regência da Orquestra Sinfônica Municipal. Apesar de estar sendo investigado, não pairam indícios contra ele, ao contrário do que acontece com Nacked e Herencia, os principais nomes nas apurações conduzidas pela Controladoria-Geral do Município e pelo Ministério Público de São Paulo.

As mudanças promovidas pela gestão empossada há três anos resultaram na alta da qualidade da programação. O número de sócios-assinantes (anuidade entre 100 e 640 reais) dobrou de 3 000 para 6 000, e o público cresceu de 61 000 visitantes, em 2012, para 101 000 no ano passado. Em setembro de 2015, porém, algo de estranho começou a acontecer. Atrações importantes anunciadas para este ano, como a ópera Così fan Tutte, de Mozart, e o concerto La Fura dels Baus, foram cancelados sob a alegação de falta de verba.

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A relação entre os cabeças da diretoria técnica e artística, até então cordial, azedou. Amigo de Haddad, com bom trânsito na prefeitura, Neschling queixou-se do diretor-geral ao prefeito, que pediu à controladoria-geral uma auditoria nas contas do teatro, em outubro. Em paralelo, o Ministério Público, movido por uma denúncia do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), havia detectado a existência de “movimentações bancárias suspeitas” de José Luiz Herencia. Em poucas semanas, as apurações se cruzaram.

Patricia Melo e Jerencia
Patricia Melo e Jerencia ()

A suspeita dos investigadores é que Herencia use a mãe e a ex-mulher como laranjas. Ele possui procuração para movimentar as contas-correntes de ambas, o que chamou atenção. Nos últimos dois anos, elas adquiriram um apartamento de 6 milhões de reais na Rua Minas Gerais, em Higienópolis (a poucas quadras do apartamento onde vive Neschling), e três terrenos em Ilhabela, no litoral norte. O salário dele, de 19 000 reais, seria incompatível com as aquisições.

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O diretor-geral também recebia, em contas bancárias no nome das duas, depósitos de produtoras culturais que prestavam serviços para o Municipal. “Em alguns casos, eles não se concretizaram, pois o CNPJ era de uma empresa- fantasma”, aponta o controlador Roberto Porto. Formado em filosofia pela USP, Herencia foi indicado ao cargo por Juca Ferreira, então secretário e atual ministro da Cultura. Ele foi seu assessor especial durante parte da administração do ex-presidente Lula. Também passou pela Secretaria Estadual da Cultura sob a gestão do então secretário Andrea Matarazzo.

Entre seus conhecidos, Herencia adora falar que também é artista — cita a publicação do livro de poemas Água Furtada, lançado em 2011, que vendeu 100 exemplares pela Azougue Editorial. Em novembro, ao tomar conhecimento do avanço da apuração contra ele, demitiu-se — e saiu levando o disco rígido do computador que usava no Municipal, contendo todas as suas informações de trabalho.

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O item foi recuperado pela Justiça, que também sequestrou seus imóveis e bloqueou suas contas. Procurado, Herencia não quis comentar nenhuma das acusações: “Eu me limito a dizer que estou prestando depoimentos”. Na última semana, ele teve dois encontros no Ministério Público.

Misael Santos
Misael Santos ()

O outro capítulo das acusações é relacionado ao IBGC, a organização social que geria o teatro — e que, para isso, recebeu 106 milhões de reais da prefeitura só em 2015. “Havia uma total promiscuidade entre as contas do órgão e do Instituto Brasil Leitor (IBL), que também é dirigido pelo William Nacked”, diz o controlador-geral Roberto Porto. “Temos provas de que foram feitos empréstimos entre as organizações. A sede era a mesma e alguns empregados, compartilhados.” Em resumo, a desconfiança é que o dinheiro do teatro acabava no IBL.

Desde o último dia 26, com a intervenção, Nacked está afastado da administração. “O modelo de gestão por O.S. (organização social) veio para ficar. O legado vai ser deixado. Sobre corrupção não vou conversar. São acidentes de percurso. Se houve problemas de governança, a gente põe em dúvida o presidencialismo?”, declara.

Sobre John Neschling, há outros questionamentos. Chama a atenção do promotor Arthur Pinto de Lemos Júnior o fato de o maestro passar muitas temporadas no exterior, com trabalhos de regência para outras orquestras, sem se licenciar do cargo (e do salário mensal de 150 000 reais). “Meu contrato com o IBGC não exige tempo de permanência nem exclusividade. Cumpro meus compromissos, e ainda levo o nome do teatro para fora do país”, diz Neschling.

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O órgão também quer saber como se deu o pagamento, por parte do IBGC, de 300 000 euros (cerca de 1 milhão de reais) a uma produtora de Mônaco escolhida por Neschling para realizar o espetáculo Alma Brasileira, que retrataria a obra do compositor Villa-Lobos e, até hoje, não saiu do papel. “O convênio não foi adiante pelas mais diversas explicações. A responsabilidade é inteira do senhor Nacked”, responde Neschling. Para a promotoria, o maestro também pode ser responsabilizado. “Há muita subjetividade em uma contratação artística, são valores difíceis de avaliar e sabemos que alguns gestores se aproveitam disso para superfaturar”, diz Lemos Júnior.

Jamil Maluf
Jamil Maluf ()

Além disso, ronda o maestro uma bélica rede de intrigas pessoais, fruto de seu temperamento peculiar e intempestivo. Em novembro de 2014, o cantor lírico Misael Santos soltou o gogó para os promotores. Relatou a demissão de quinze músicos e um suposto favorecimento na contratação dos novos escolhidos. “Todos já tinham sido funcionários dele na Companhia Brasileira de Ópera”, aponta Santos, que chegou a tentar uma vaga no time, sem sucesso.

Neschling confirma que muitos contratados eram seus ex-funcionários. “Mas não houve favorecimento, as audições são gravadas e seguem padrão internacional. Trabalho com gente boa, seja onde for”, refuta. Nos bastidores, músicos se referem a Neschling como “grosseiro” e “arrogante”. Todos são proibidos de falar com a imprensa. “A tirania dele garante o nosso silêncio, temos medo da demissão”, diz um deles, sob anonimato.

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Contestar pode sair caro. Mario Zaccaro, ex-maestro do Coral Lírico, queixou-se do tratamento recebido durante os ensaios da ópera La Bohème e foi mandado embora. “Sou fã do trabalho dele, mas o clima era de terror.” Funcionário da casa desde 1980, Jamil Maluf foi desligado em 2014. “Eu me senti desrespeitado ao extremo porque não houve explicação”, lembra. “Cheguei a ser diretor artístico e não ganhei um centavo a mais por isso, além da minha remuneração de 10 000 reais como regente da Orquestra Experimental de Repertório.”

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Capa Teatro Municipal 2468
Capa Teatro Municipal 2468 ()

Contratado para ser diretor cênico da montagem de Otello em 2015, o italiano Giancarlo Del Monaco saiu brigado — e disparou para todos os lados. “Todo o teatro treme de medo diante de Neschling e Herencia. Aquilo não é um teatro, é uma prisão. A pessoa ainda mais temida é a mulher de Neschling (a escritora Patrícia Melo). É ela quem comanda o teatro”, afirmou Del Monaco em entrevista à Folha de S.Paulo.

Patrícia, que não tem nenhuma ligação formal com a instituição, é presença constante por ali, motivo pelo qual ganhou o apelido de “papagaio de pirata”. O cantor Misael Santos, que não trabalha no Municipal, mas foi convidado para assistir, em agosto do ano passado, a um ensaio da ópera Manon Lescaut, relata ingerência de Patrícia: “Eu a vi opinando sobre iluminação, cenário e implicando com todos no ambiente”. 

Nos dias de estreia, artistas reclamam que ela se maquiava antes mesmo daqueles que entrariam em cena. É verdade, maestro? “Se minha mulher se maquia no meu camarim no dia da minha estreia, usando o próprio material, e se ela é amiga da maquiadora que passou para vê-la, é problema dela.” Inimigos também reclamam da presença constante de Schlomo, o yorkshire do casal, e relatam os mimos mais pitorescos ao cão, que o dono refuta: “Jamais um funcionário do teatro levou meu cachorro para passear”.

Misael Santos
Misael Santos ()

Fora dali, Patrícia e Neschling têm a simpatia do primeiro-casal da cidade. Dona de um sítio em São Francisco Xavier, ela hospedou, com o marido, em um fim de semana de julho do ano passado, o prefeito Fernando Haddad e a esposa, Ana Estela. Antes das denúncias, sua relação com o agora ex-amigo Herencia também era boa. Ainda no início da gestão, ele chamou o então diretor-geral ao palco e, diante dos músicos, disse que era um homem de sua “total confiança”.

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Na ocasião, contou que teria como objetivo contratar os artistas com carteira assinada, de acordo com o que a lei pedia. Isso foi feito — 246 integrantes da Orquestra Sinfônica Municipal, do Coro Lírico, do Coral Paulistano e do Quarteto de Cordas hoje trabalham de acordo com as regras da CLT. Ainda faltam os 32 funcionários do Balé da Cidade.

opera la boheme
opera la boheme ()

Além do cancelamento de parte da programação do teatro, os problemas na gestão puderam ser percebidos pelo público no dia a dia. O ar-condicionado do local passou três meses quebrado — quem ia assistir a uma ópera precisava se contentar com janelas abertas e o barulho dos carros lá fora. A prefeitura explicou que a fiação, que está nas galerias subterrâneas do teatro, foi roubada.

Apesar da reforma de 28,3 milhões finalizada em 2011, a estrutura elétrica não foi totalmente modernizada. Os frequentadores mais prevenidos levavam leques, que trabalhavam em velocidade máxima. No último domingo, 28, o maestro Neschling chegou a passar mal de calor durante uma apresentação. No dia seguinte, o equipamento foi reparado. Afinal, mais quente do que a encenação que se passa nos bastidores do teatro, impossível.

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