Estabelecimentos deixam de funcionar por 24 horas por causa de crise e insegurança
Supermercados, postos de gasolina e padaria estão entre os comércios que reduziram a jornada noturna
Com seis estabelecimentos na capital, sobretudo em bairros nobres como Alto da Lapa e Higienópolis, a rede de padarias Dona Deôla é uma parada estratégica para notívagos em busca de um lanche ou de um café no meio da madrugada. Fundada em 1996, a empresa tornou-se referência em atendimento 24 horas por aqui. Entretanto, esse diferencial não é mais o padrão único dentro do grupo. Uma de suas lojas mais recentes, inaugurada no ano passado na Avenida Fagundes Filho, na Saúde, fecha às 22 horas de domingo a quinta e estica apenas uma hora a mais nas sextas e nos sábados. Há dois anos, a tradicional unidade na Avenida Pompeia também passou a descer suas portas às 22 horas nos domingos.
Não é o único ponto comercial paulistano a abandonar os plantões da madrugada. Outros tipos de negócio, como supermercados, bancas de jornal e até bares, estão deixando de virar a noite à disposição dos clientes. Os empresários apontam dois motivos principais para o fenômeno. O primeiro, evidente, é a crise econômica, que derreteu os lucros em diversos setores. Nos seis primeiros meses do ano, o comércio acumulou uma queda de movimento de 2,2%, a maior baixa desde 2003, quando o recuo foi de 5,7%. “Quando a noite avança, o fluxo de clientes cai muito”, explica o diretor da Dona Deôla, Antonio Mirandez. “Em alguns dias mais fracos, para não deixar os funcionários de braços cruzados, coloco todo mundo para organizar as gôndolas.”
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O outro fator responsável pelo encurtamento do período é a segurança. Alvos clássicos (e fáceis) dos bandidos, os postos de combustível tornaram-se um emblema dessa situação ao reduzir drasticamente sua carga horária. Há três anos, pelo menos 800 dos 2 000 estabelecimentos paulistanos ficavam abertos 24 horas. Hoje, não chegam a 300. Todos fecham no mesmo horário da tradicional loja de conveniência anexa, que oferece bebidas, lanches e costumava manter caixas eletrônicos. “A violência fez esse tipo de comércio sumir dentro dos bairros; os que resistem estão nas grandes avenidas”, afirma o presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de São Paulo, José Alberto Paiva Gouveia.
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Dono de dois estabelecimentos na região do Morumbi, um de bandeira Shell e o outro BR, Gouveia encerra a atividade de ambos à meia-noite desde 2014 por causa dos frequentes assaltos. “Nosso negócio não tem porta; somos muito vulneráveis”, diz. Segundo ele, na época em que funcionavam 24 horas, os locais registravam um roubo por mês. “Depois que mudamos o horário, a coisa melhorou um pouco”, diz.
Problema semelhante também fez pelo menos três bancas de jornal na Avenida Paulista diminuir seu expediente. Todas passaram a fechar as portas entre 22 e 23 horas. “Os fregueses sumiram das ruas e ficaram apenas os mendigos e os viciados em drogas”, reclama Paolo Pellegrini, há doze anos proprietário de uma delas na esquina com a Rua Haddock Lobo. Outro de seus pontos, localizado entre a Avenida São Luís e a Ipiranga, deve ter o mesmo destino. “Não vou conseguir chegar nem ao fim do ano funcionando nesse esquema.” Comprar flores é mais uma atividade que tende a se tornar exclusivamente diurna. Dos dez quiosques na Avenida Doutor Arnaldo, vizinhos ao Cemitério do Araçá, menos de cinco permanecem abertos a noite inteira.
A tendência é verificada não apenas em empresas modestas, mas também em companhias maiores. Em maio do ano passado, o Grupo Pão de Açúcar, o maior varejista do país, decidiu abolir sua rede de supermercados 24 horas, sob o argumento de que havia baixa frequência de consumidores na madrugada. Das 118 lojas na capital, 25 delas mantinham as portas abertas dia e noite. Atualmente, a maio ria trabalha no máximo até as 23 horas. Na época, quatro hipermercados Extra, que funcionavam em período integral, também deixaram de atender os clientes a altas horas. No fim do ano, no entanto, a empresa recuou e resolveu deixá-los abertos no terceiro turno. Hoje, são sete unidades que atuam nesse formato, incluindo a da Rodovia Anhanguera e a da Freguesia do Ó.
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Mesmo setores que têm vocação nata para a madrugada, como o dos bares, não varam mais a noite. Dos cerca de 15 000 estabelecimentos do tipo na capital, menos de 1% vai até as 4 horas. A maioria acaba fechando por volta da 1 da manhã. “Depois desse horário, é preciso realizar investimentos muito altos em segurança, manobrista e isolamento acústico”, explica Percival Maricato, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em São Paulo.
Tradicional boteco na região da Rua Augusta, o Barão da Itararé até está disposto a fechar apenas quando o último cliente for embora. O problema é que este está deixando a mesa muito mais cedo que de costume, no máximo às 2 horas. “A violência nos tira clientes há dois anos, e a crise financeira piorou tudo há três meses”, diz a gerente do local, Karina Alencar.
O comércio e os serviços oferecidos a qualquer hora do dia e da noite começaram a ganhar força no Brasil a partir da estabilização da moeda, em 1994. O movimento cresceu bastante nos anos 2000, como uma tentativa das empresas de se diferenciar da concorrência. “A verdade é que nunca foi uma operação muito lucrativa”, afirma o professor Claudio Felisoni, presidente do Programa de Administração do Varejo da Fundação Instituto de Administração. “A compra na madrugada é de baixo tíquete médio, não tem movimento que arque com os custos”, completa o consultor de negócios Enéas Pestana, ex-CEO do Grupo Pão de Açúcar.
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Baixa atividade noturna
Alguns setores tiveram seu horário de funcionamento reduzido
- Bancas de jornal: três espaços tradicionais localizados na Avenida Paulista passaram a fechar as portas até as 23h
- Bares: dos 15 000 estabelecimentos na capital, apenas 1% avança até as 4h, a maioria não passa da 1h
- Floriculturas: menos da metade dos dez boxes da Avenida Doutor Arnaldo continua aberta durante a noite
- Postos de combustível: dos 2 000 na cidade, 300 continuam funcionando 24 horas, contra 800 há poucos anos
- Supermercados: 25 lojas da rede Pão de Açúcar deixaram de operar na madrugada no ano passado