Possível mudança nas regras de ocupação causa discórdia nos Jardins
Proposta para permitir mais habitantes, com vilas de casas e predinhos no lugar de centenas de imóveis encalhados, divide os moradores da área nobre
Parte da cobiçada área que compreende os Jardins — América, Europa, Paulista e Paulistano — pode passar por mudanças significativas em seu tombamento, determinado em 1986 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Na quarta (8), um grupo composto de representantes do órgão e membros do Executivo e do Legislativo, além de moradores do pedaço, estudará a liberação da construção de condomínios horizontais, como vilas — permitindo que mais de uma família ocupe um mesmo lote, o que hoje é proibido —, e o fracionamento dos terrenos.
A altura máxima dos muros, estabelecida em singelos 80 centímetros, também deverá ser revista. Na prática, essa regra já é descumprida em boa parte das casas, sob a alegação de falta de segurança. Proposta pelo arquiteto Carlos Augusto Mattei Faggin, presidente do Condephaat, a iniciativa pretende reverter o esvaziamento da área, apinhada de placas de “Vende-se” e “Aluga-se”.
Atualmente, segundo levantamento do grupo Zap Imóveis, das 3 100 residências situadas no polígono do tombamento (que compreende vias como Rebouças, Brigadeiro Faria Lima, Estados Unidos e Nove de Julho, entre outras), 594 encontram-se para vender ou alugar, um número 30% maior do que o verificado há um ano. “As saídas para essas dificuldades têm sido adiadas por anos”, afirma Faggin, que prevê a resolução da questão antes das eleições de outubro, após as discussões, a apreciação do assunto pelo conselho do Condephaat e a homologação da proposta pelo secretário estadual da Cultura.
Na Rua Alemanha, no Jardim Europa, por exemplo, quatro casas de um mesmo quarteirão estão vagas. Em uma delas, de 1 200 metros quadrados, com 500 metros de área construída, um vigia, que acumula a função de corretor informal, passa oito horas por dia sentado em uma cadeira de plástico. Ele recebe 900 reais para tomar conta do espaço e limpar a piscina. “Até aparecem curiosos, mas, em um ano e meio aqui, ninguém comprou nada”, lamenta ele, que pediu anonimato.
Situação parecida vive a administradora Monize Neves, dona de um terreno de 1 500 metros quadrados, cuja residência principal, em ruínas, não tem compradores dispostos a pagar mais de 10 milhões de reais pelo espaço (o IPTU é de 80 000 reais por ano). “Minha ideia era construir seis apartamentos de 200 metros quadrados, divididos em dois pavimentos”, diz ela. Como a lei de tombamento não permite a chamada multifamiliaridade, o plano nunca foi aprovado pelo Condephaat. “O projeto ficou maravilhoso, é uma pena”, lamenta.
No vizinho Jardim América, um empresário tenta há oito anos comercializar, por 12 milhões de reais, uma residência construída sobre um terreno de 1 500 metros quadrados. O IPTU, de 100 000 reais por ano, é um dos impeditivos para a concretização do negócio. “Quem hoje deseja ficar em uma casa dessas, para gastar uma fortuna com jardins, manutenção e impostos?”, questiona o empreendedor, que não se identificou. “Quero ter o direito de repartir o terreno, vender uma parcela da terra e viver sossegado em uma moradia de 250 metros quadrados.”
Caso as novas regras sejam aprovadas, a criação de pequenas vilas ou predinhos de no máximo dois andares provavelmente trará cenário semelhante ao visto em um pedaço vizinho. Já há construções desse tipo próximo ao Shopping Iguatemi, fora da área tombada. Ali, propriedades anunciadas como “condomínios”, com até seis residências, garagem subterrânea e quatro ou cinco suítes, não saem por menos de 6 milhões de reais cada uma. “Existe muito mercado para isso e uma vila dessas não incomoda em nada”, diz o arquiteto José Armênio de Brito Cruz, presidente da SP Urbanismo. “Podem dizer que haverá mais carros nas ruas, mas dá para limitar os veículos em cada casa.”
Em 21 de maio, as possíveis mudanças no tombamento dos Jardins passaram pelo primeiro round de discussão, em uma acalorada audiência pública na sede do Condephaat, na Luz. A maioria dos presentes era contrária a qualquer tipo de alteração de uso e ocupação das residências. Um dos primeiros a falar, o arquiteto Candido Malta Campos Filho fez uma espécie de mea-culpa por ter criado, no início dos anos 80 (quando era secretário de Planejamento), os primeiros corredores de serviços da região, como o da Rua Estados Unidos e o da Alameda Gabriel Monteiro da Silva. “Por onde passa o boi, passa uma boiada”, admitiu Malta Filho.
“São poucos os proprietários interessados em ver seu problema resolvido, ou seja, vender seus imóveis pelo maior preço possível”, acusou na mesma audiência Joca Levy, conselheiro da associação Ame Jardins, que representa 406 famílias da região. Ele propôs que “as alterações na lei sejam dirigidas ao morador que está ali vinculado, que fez raízes no bairro e quer ficar, não para quem quer sair”. Representante de Cerqueira César, a advogada Célia Marcondes também se posicionou de forma contrária às modificações. “Queremos uma Itaquera-Jardins, uma São Miguel-Jardins (ambos bairros da Zona Leste), uma Pedreira (na Zona Sul) que se nivele ao patamar dos Jardins, não o contrário”, defende Célia.
Essa não é a primeira vez que uma parcela atuante de moradores se une para barrar alterações nas normas que envolvem os Jardins. Em 2016, durante as discussões da Lei de Zoneamento, na gestão Fernando Haddad, grupos contrários a mudanças nas regras de ocupação do solo se mobilizaram e não permitiram a instalação de novos corredores comerciais em áreas estritamente residenciais. À época, foram criadas faixas em várias residências e o lobby conseguiu brecar a ideia, discutida na Câmara Municipal.
Enquanto as turmas do pró e do contra debatem o futuro dos Jardins, muitas irregularidades são vistas no pedaço. A começar pela altura dos muros. A resolução de tombamento fala em gradis de 80 centímetros, ou 2 metros caso a fachada seja vazada. Na Rua Bolívia, uma barreira quadriculada de mais de 4 metros de altura esconde o escritório de uma empresa de crédito. “Existem provas de que as mudanças já ocorrem sem que haja nova regulamentação”, diz Valter Caldana, professor de arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
A menos de 2 quilômetros dali, na Rua Primavera, estritamente residencial, uma loja do tipo “família vende tudo” comercializa móveis usados. Dono do negócio, o empresário Marcelo Mega, há 22 anos no ramo e há três meses no endereço, já foi multado pela prefeitura duas vezes. Cada autuação é de 8 000 reais. “A gente não incomoda ninguém, mas mesmo assim vou sair daqui”, garante ele.
Além dos problemas evidentes, existem aqueles que quase ficam despercebidos. Na esquina da Rua João Moura com a Alameda Gabriel Monteiro da Silva, uma pracinha, que poderia servir de área de descanso de pedestres ou de passeio para donos com pets, se vê cercada por vegetação que impede a passagem. Vizinho dali, o arquiteto Guilherme Torres tentou adotar o espaço, mas teve seu pedido negado pela prefeitura. “Fiz um projeto com deque de madeira, bancos e um parquinho”, explica ele, que chegou a brigar com a “dona” do lugar, a moradora da frente. “A praça era cercada com correntes, mas tiraram depois que reclamei.” Ainda assim, o local mais parece um jardim anexo a tal residência.
Casos de irregularidades são vigiados de perto por associações como a Ame Jardins. Recentemente, o grupo encaminhou à Prefeitura Regional de Pinheiros uma lista com dez locais comerciais que estariam atuando fora das normas. Em um deles, uma empresa de publicidade instalada na Rua Groenlândia construiu uma espécie de ponte entre dois imóveis cortados por uma viela, fechada com autorização da prefeitura. “Notificamos os proprietários para que retirassem a passagem, mas até agora nada”, afirma a prefeita regional de Pinheiros, Juliana Ribeiro. Ela prometeu resolver o problema nos próximos dias.
Outra queixa se deu contra o local de eventos Casa Fares, na Avenida Europa. Em 26 de junho, o espaço foi multado pela Prefeitura Regional de Pinheiros em 2 132 reais devido à realização de uma festa sem autorização da municipalidade. “Eu possuo alvará de eventos, sim”, rebate Abdul Fares, que já recorreu da autuação (leia a entrevista no quadro acima). A prefeitura diz que o empresário tem licença para a exposição de móveis e uma padaria — mas com veto ao consumo de pães no local.
Projetado em 1913 pela dupla de urbanistas britânicos Barry Parker e Raymond Unwin, contratados pela Cia. City (que existe até hoje), o Jardim América, inspirado nos bairros-jardim londrinos, foi o primeiro da capital paulista com essa concepção. Localizada na várzea do Rio Pinheiros e repleta de charcos e pântanos, a área, que ficava no subúrbio da capital, foi concebida com regras de zoneamento próprias, direcionamento de tráfego e normas de construção com limites de ocupação, como ocorre até hoje em condomínios fechados, caso de Alphaville.
A partir daí, o modelo serviu de exemplo para futuros loteamentos, entre eles os jardins Europa e Paulistano, Alto de Pinheiros, City Lapa e Pacaembu, todos igualmente tombados. “Esses bairros autônomos, com regras próprias, fazem parte de uma cidade que não existe mais”, acredita o arquiteto Silvio Oksman, do Instituto dos Arquitetos do Brasil. “Há 100 anos essas terras não valiam nada, e hoje, incorporadas pela cidade, não podem perpetuar privilégios.”
Em outros países, o debate pelo qual os Jardins passam atualmente já foi objeto de apreciação. Em Londres e Nova York, antigos palacetes foram desmembrados em apartamentos, sem que as fachadas fossem descaracterizadas. No Pacaembu, aqui em São Paulo, em 2010, tentou-se alterar o tombamento, mas os vizinhos se mostraram reticentes às mudanças. Hoje, das 2 100 casas do bairro, 601 estão para vender ou alugar, segundo levantamento do Zap Imóveis. “Qualquer regra deve garantir a qualidade de vida não só das famílias moradoras do local, como de toda a cidade”, entende o vereador José Police Neto, do PSD. “Permitir a perpetuação de ‘bairros-sítio’ ou ‘jardins das muralhas’ será um erro irreparável.”
“Se querem um condomínio, Alphaville é logo ali”
Localizada na Avenida Europa, a Casa Fares realiza eventos temporários há seis anos. A Prefeitura Regional de Pinheiros afirma que o espaço não pode ser usado para esses fins e, em 26 de junho, após ser acionada pela associação Ame Jardins, aplicou uma multa ao estabelecimento. Dono do endereço, o empresário Abdul Fares, herdeiro das Lojas Marabraz, ex-filiado à Ame Jardins e defensor da abertura comercial do pedaço, onde mora, se defende a seguir.
A Casa Fares tem alvará para eventos?
Sim, tem. Realizamos grandes eventos nos últimos anos, todos autorizados. Sobre a multa, não recebi nenhum auto de infração, apenas um boleto, e já recorremos. Na continuação da Avenida Europa, já tem o Bolinha, o Friday’s, questão resolvida.
Você é a favor de uma maior abertura comercial dos Jardins?
Sim. Aqui deveria ser como em Seul ou Houston, que não têm restrições de zoneamento. O que eles têm lá são padrões, regras de convivência, para medir incômodos aos vizinhos. Sou claro defensor de usos mistos e de estabelecimentos com padrões de incomodidade determinados. Não dá para ter um feudo no meio da cidade.
Há muita gente contrária a qualquer tipo de afrouxamento na lei.
Afrouxamento já se vê muito por aí, como as guaritas de segurança na calçada e as rotatórias verdes, não previstas no traçado da Cia. City. Se as pessoas querem morar em condomínios fechados, Alphaville é logo ali.
A Ame Jardins persegue você?
Não mais. O que eles fazem é chamado em Nova York de “not in my backyard” (não no meu quintal). Por exemplo, gostam do MIS, desde que não haja shows e exposições com grande público.
A região está muito descaracterizada?
É só ver a quantidade de escritórios clandestinos. Devemos olhar para a realidade e nos adaptar a ela sem falsas expectativas, como ocorre em Nova York, Paris e Milão, onde a elite dos Jardins gosta de passear. Lá, bairros de luxo têm comércio.