Em meio à degradada Luz, uma vila com clima de interior resiste ao tempo
Vila Sá Barbosa é um conjunto de cinco ruelas conectadas entre si que abriga um restaurante com rodas de samba aos fins de semana
De um lado, a irrespirável Avenida do Estado. Do outro, as novas cracolândias da Luz, surgidas após a dispersão do “fluxo” de usuários de drogas por investidas recentes da polícia. Um muro alto, quase vizinho, é o fundo das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a sombria Rota. Encapsulada por essa vizinhança não tão aprazível, uma vila centenária vive cheia de crianças que jogam futebol na rua e senhoras que passam as tardes na janela, a falar da vida alheia.
Bem arborizada, praticamente sem trânsito de carros, a Vila Sá Barbosa é, na verdade, um conjunto de cinco ruelas conectadas entre si. Cada uma leva o nome de uma filha de Francisco Sá Barbosa (na pág. ao lado), um rico comerciante português que ergueu o loteamento para alugar a militares e operários, nos idos de 1910.
A última casa a manter a arquitetura original.
Naqueles tempos, as casas tinham a mesma arquitetura, com muros ornamentados e simpáticos “abacaxis” de cimento no alto da fachada. As ruas eram de paralelepípedos, mais permeáveis que as de asfalto. Nada disso sobreviveu ao “progresso”.
A casa rosa (na foto) da Rua Matilde Sá Barbosa é a última a preservar o visual original. Depois que a família do proprietário vendeu os imóveis, em 1953, cada comprador reformou a fachada a seu gosto, criando aquele mosaico caótico tão paulistano. Os paralelepípedos sucumbiram nos anos 1990, vítimas de um vereador que trouxe o asfalto em troca de um punhado de votos.
Além da paisagem, a marcha urbana atingiu traços culturais da vila. Um deles foi o futebol. Ali existiu, a partir de 1937, o União Sá Barbosa, time que jogava nos campos da várzea do Rio Tietê entre o Pari e a Casa Verde. Nas décadas seguintes, os gramados viraram avenidas e a equipe, em meados dos anos 1980, também se tornou memória. Além disso, havia o samba. Antes da construção do Sambódromo do Anhembi, em 1991, as escolas paulistanas desfilavam na Avenida Tiradentes — e as discretas ruelas da vizinhança serviam para a turma trocar a fantasia, namorar e esvaziar tubos de lança-perfume. A folia era o programa favorito dos moradores naqueles fevereiros.
Ocorre que o samba, felizmente, está vivíssimo no pedaço. Na entrada da vila, como um guardião postado na esquina, o Restaurante e Bar Vila Sá Barbosa tem feito rodas de altíssimo gabarito nos últimos meses. O ponto é antigo. Funciona desde os anos 1930, primeiro como vendinha, depois boteco pé-sujo e, enfim, bar e restaurante. Em 2011, passou às mãos de Téo Bressan, 52. Nascido na Sá Barbosa, ele tinha um restaurante no vizinho Liceu de Artes e Ofícios e passou a servir almoços ali. Veio a pandemia, o negócio atrasou aluguéis e acumulou dívidas. Em abril de 2021, chegou a ser colocado à venda. “Desisti de vendê-lo e assumi o prejuízo. A memória afetiva falou mais alto. Não queria que o ponto virasse um depósito de muambas, como os imóveis do Pari”, diz.
No fim daquele ano, a amiga Railidia Carvalho, cantora de uma das rodas mais antigas da cidade, a Inimigos do Batente, se tornou sócia do negócio. O lugar, então, mudou de propósito. Passou a abrir só aos sábados, para receber sambistas do quilate de Moacyr Luz, Noca da Portela e Aquiles da Vila (na foto maior, com o pé na cadeira), também nascido ali (por isso “da Vila”) e compositor dos sambas da Águia de Ouro e da Mocidade Alegre neste Carnaval. É autor, ainda, de uma canção-hino sobre a Sá Barbosa — cujo verso “nas esquinas da ilusão” inspirou o título do texto. O bar ainda dá prejuízo, isso é certo. Téo usa outros negócios para mantê-lo aberto. Mas, quando soa o cavaquinho, quem se importa? “É difícil explicar essa lógica… É um amor por coisas que a cidade destruiu, sabe?”, ele diz. Está explicado.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829
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