Não sei por que caímos na tolice de disputar glórias nacionais. Éramos à mesa um português e três brasileiros. Culpa da madrugada, do vinho, talvez, misturados com papo minguante. Aquela coisa de Ronaldo ou Cristiano Ronaldo, Drummond ou Fernando Pessoa, Salazar ou Getúlio, feijoada ou bacalhoada, Saramago ou Paulo Coelho, Machado de Assis ou Eça de Queirós… O português só admitiu uma derrota: mulher. “As brasileiras são campeãs absolutas em todas as categorias”, decretou. Era o vinho, por certo.
Eça também admitiria — e passo a falar dele, neste mês do aniversário da sua morte, 113 anos atrás. A mulher brasileira o fascinava. O escritor dizia que quando o Brasil se decidisse a ser brasileiro seria uma grande nação: “Os homens têm inteligência; as mulheres têm beleza — e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bondade”.
Tinha uma visão meio ligeira do Brasil, com seus quês de humor:
“A surpreendente facilidade com que a República se substituiu ao Império provém de que há muito no Brasil nada separava a República da Monarquia — senão o imperador”.
Brincava, nas crônicas, sobre o “advento” da Repúblican o Brasil, “como nas mágicas”: a um sinal da espada de Deodoro, diz ele, some a Monarquia, “sem barulhos”, como se fosse uma mudança de cenário num teatro, “como cenas pintadas que deslizam”, e no lugar dela e de suas instituições, “ante a vista assombrada, surge uma República, toda completa, apetrechada, já provida de bandeira, de hino, de selos de correio e de bênção do arcebispo Lacerda”.
Achava que aqui não criávamos nada, vinha tudo de lá, ideias, costumes e o resto, assim como os ingleses exportavama Inglaterra para os Estados Unidos. Para ele, as Américas nada fizeram de original, “exceção dos toucados de penasdos índios”. Queria um Brasil camponês, porque “mais vale ser um lavrador original do que um doutor mal traduzido do francês”. Via a Inglaterra como um império que se afundava. Portugal? “Em Portugal o cidadão desapareceu. E todo o paísnão é mais do que uma agregação heterogênea de inatividades que se enfastiam. É uma nação talhada para a ditadura —ou para a conquista.” Palavras proféticas. Dizia-se literariamente francês, “exceto num certo fundo sincero de tristeza líricaque é uma característica portuguesa, num gosto depravadopelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada”.
Quando fez a sua profissão de fé realista, mostrou quea opção era política. Adotar o realismo artístico, naqueles anosde 1870 e 80, era ser de esquerda: “O que queremos nós com o realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer a caricatura, do velho mundo burguês, sentimental ,devoto, católico, explorador, aristocrático etc.; e apontá-lo ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático — não é uma arte. É um auxiliar poderosoda ciência revolucionária”.
Mais tarde, abrandaria o seu ímpeto destruidor: “Na arte só têm importância os que criam almas, e não os que reproduzem costumes”.
Pois não era o que fazia Machado de Assis, caro amigo português?
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