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Encarando Sô Lau

Confira a crônica da semana

Por Ivan Angelo
Atualizado em 14 fev 2020, 16h00 - Publicado em 27 jul 2018, 06h00

Tenho diante de mim uma fotografia rara, pequena, incrustada em um nicho ovalado de um porta-retratos de mesa. O homem retratado, senhor de lisos cabelos brancos arrumados para o lado direito, barba e bigodes brancos bem aparados, vincos limitando as bochechas dos dois lados do nariz, pequena e funda cicatriz acima da ponta nasal da sobrancelha esquerda, me encara com seus olhos castanhos. É meu avô materno, Lauro, Sô Lau.

Encaro-o de volta: vamos ver quem pisca primeiro? — tentando juntar no cipoal da memória sua figura esfacelada. Nada, no semblante composto, severo, lembra o homem de roupa de brim e de botinas dado a gritos e destemperos, de quem eu me escondia nos muitos cômodos da casa de sua chácara, após algum malfeito. Num desses esconderijos, o quarto de tralhas, ele entrou de repente, abriu seu baú com chaves que trazia no bolso, e na tampa levantada pude ver um cartaz com a foto grande de um homem. Sô Lau fechou o baú e se foi. Minha tia mais velha me contou que era um político, parente longe, que tinha tomado três tiros no pescoço num comício em Montes Claros e fugiu para a Europa, nos anos de Getúlio Vargas.

Encaro a foto: quem pisca primeiro? Nas noites da chácara, depois do café com leite e dos bolos, todos deitados, podia-se ouvir sua voz potente e gutural retumbando pelos cômodos da casa, “uma ave-maria para Geralda”, e lá vinha a oração inteira, “uma avemaria para Mariinha”, e desfiava aves-marias para as quatro filhas, para a esposa, genros e dezoito netos, um por um.

Quantos anos teria quando foi feita a rara foto? Rara porque a outra que se conhece é de 1917, de uma carteira de identidade. Consta lá: nascido em Santa Luzia, em 1870, cabelos castanhos, olhos castanhos, 1,66 metro. Que idade teria, então, nos anos de 1940, quando levava um saco de laranjas nas costas desde a chácara em Venda Nova até nossa casa em Santa Teresa, Belo Horizonte? Setenta e tantos anos — é o homem da foto. Eu nem imaginava que era um idoso, só via o prodígio de força. Crianças não sabem avaliar essas coisas.

Que era para você aquele menino, Sô Lau? Ô menino, vai na venda do Zé Bistene me comprar 200 réis de rapé. Ô menino, vai lá no Turco e joga 200 réis no cavalo. O perfume do capim-cheiroso nas suas roupas à tarde dava um desejo de colo, mas colo mesmo não veio nunca. Aquele saco de laranjas seria seu modo de nos amar.

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Que me dizem do seu passado, Sô Lau, esses seus olhos claros, essa cicatriz? Nada. Que havia por trás dos seus destemperos? Uma linhagem de mandões? Mulher e quatro filhas para imperar? “Você é bugra, Toninha! Eu tenho sangue azul!” — ouviram-no dizer mais de uma vez para vovó Antônia, de sangue índio, professora primária, que rebatia: “Deixa de bobagem, Sô Lau. Você nem sabe ler”. Verdade. Na carteira de identidade, aos 47 anos, estava lá: “Instrução rudimentar”. Gosto dos termos dessa querela, Sô Lau, que dá mais importância à leitura do que a um título de nobreza. Vovó seguia a política dos liberais, queria o direito de voto para as mulheres; Sô Lau escondia a foto daquele político conservador no seu baú.

Sô Lau, de sangue azul, se largou, confiado no poder da família, de fazendas, escravos, gado, plantações, tecelagem, a ponto de nem querer ler? O imperador dom Pedro II se hospedou na casa de seu tio, visconde do Rio das Velhas, em 1881. O menino Lauro, com 11 anos, terá cruzado com ele, participado das festas, vivido aquele fausto. Sessenta anos depois me mandava comprar cigarro a granel na venda do Zé Bistene. Nunca nos contou o que aconteceu no meio. Lembrar-me dele e da sua história perdida é o que posso fazer neste Dia do Avô, 26 de julho.

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