Houve época em que sobriedade era requisito para um bom bebedor de cachaça. Apreciadores se respeitavam e faziam por merecer, sem alarde, diferentemente do ramo popular dos cachaceiros e pinguços, e também dos faroleiros. O pinguço é o sujeito dado à pinga por hábito diário e quantidade não social, fraqueza que os bebedores de que falo não se permitiam. Olhavam para o bêbado com menosprezo, como para alguém que não soube se comportar e deu má fama à bebida. Respeitavam-se uns aos outros pela resistência, adquiriam certa fama por isso, mas sem contar vantagem, sem ares, dir-se-ia até que com alguma modéstia encobrindo o secreto orgulho. Conheciam dezenas de cachaças pelo nome, do modo como se conhecem as pessoas; sabiam do lugar de onde vieram, como se sabe de onde são as pessoas que se conhecem bem.
+ Crônica: Presentes da discórdia
A procedência de algumas já as definia como merecedoras de aval: Januária, Curvelo, Salinas, Parati; de Pernambuco chegava alguma coisa, quase como notícia. De Minas, mais antigamente, era raro ouvir falar das de Salinas: as principais e principes cas eram as de Januária, e respeitavam-se também as de Paracatu, um pouco menos as de Curvelo e do Mato Dentro. Salinas cresceu com mérito e algum farol. Na ausência dessas e na dúvida quanto às oferecidas, era melhor arriscar aquela de debaixo do balcão, que o próprio dono da venda talagava antes do almoço para abrir o apetite e depois, para fechar a conversa.
De primeiro, a cachaça criava fama antes de ter rótulo, que é outro momento do fazer-se. Ela era conhecida como a do seu Fulano, ou a da Fazenda Tal, ou era a do seu Fulano da Fazenda Tal. Conhecê-la era acaso, almoço, um tropeiro tê-la deixado ali para alguém experimentar, agrado de amigo, parar numa venda,seguir pistas. Tem cachaça que não nasceu para rótulo, nunca teve um em cinquenta anos de procurada, como a da Fazenda Água Limpa, de Calambau. Fizeram jus à fama antes e depois do rótulo as tais Paracatulina, Crioulinha (da Fazenda Crioulas), Claudionor, Januária, Insinuante, Dominante, Caribé (de Januária), Norte de Minas (de Curvelo). Ainda existem, essas? E viajam?
Tem cachaça que o gostar dela não é explicável, como certas amizades. Muitas vezes nem é coisa muito boa, mas depois que se pega amizade não se fala mal. Comparando, tem aquelas de que se gosta mais e menos.
Toco no assunto porque houve época em que beber cachaça era desdouro. Mesmo como aperitivo provocava sobrancelhas. Por isso, os bebedores que abrem esta crônica formavam quase uma confraria, em contraposição aos pinguços, que eram tantos e tais, já naquele século em que se descobriu o ouro, que el-rey de Portugal mandou o governador-geral das Minas destruir os engenhos de “ágoas-ardentes” porque o povo tonto não dava conta de minerar, e isso era ruim para os negócios e os ócios. Agora… A cachaça foi para os bares da fina flor, bebe-se por atitude; foi para os botecos universitários, bebe-se por bravata. Multiplicam-se as marcas, exportam-se, muitas nascem já famosas em campanhas de marketing e frequentam sacolas de free shops. Há clubes de apreciadores, empórios especializados. Fazem-se avaliações do tipo “as 40 melhores”. Serão mesmo? Vai saber.
Um dia — eu era menino de meus 14 anos — um empreiteiro deixou cair no corredor do distrito de construção de estradas de ferro onde eu trabalhava a garrafa de uma preciosidade que ia levando para bajular o engenheiro-chefe, e o perfume daquela cachaça extraordinária se espalhou pelas salas, entrou-me na alma, aroma até hoje inesquecível, e isso fez de mim um daqueles bebedores de que falo.