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Os dramas de pessoas internadas à força para se livrar das drogas

Após Justiça barrar retirada involuntária de usuários da Cracolândia sem parecer médico, prefeitura apelará ao STJ ou entrará com nova ação

Por Adriana Farias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 jun 2017, 19h04 - Publicado em 2 jun 2017, 19h03

Promovida há duas semanas, a megaoperação policial que se deu na Cracolândia, na região da Luz, resultou na prisão de 53 pessoas, em sua maior parte traficantes. A Alameda Dino Bueno e a Rua Helvétia, antes bloqueadas pelo tráfico, estão agora desimpedidas das barracas onde ocorria aos olhos de todos a venda de tóxicos, em uma espécie de feira livre.

A intervenção gerou também críticas pela pressa e desorganização. Bombas de gás lacrimogêneo foram usadas para abrir caminho, houve o início da demolição de um prédio com pessoas dentro do local e os programas de atendimento social e de saúde prometidos não estavam prontos. Ali perto, a cerca de 400 metros, a Praça Princesa Isabel virou o novo reduto de dependentes químicos. Centenas deles se instalaram no lugar e, até a última quinta (1º), seguiam no mesmo esquema anterior, de compra de entorpecentes, sujeira e abandono.

A iniciativa mais polêmica do pacote foi a tentativa da prefeitura de obter autorização para uma medida radical. De acordo com o pedido à Justiça, os viciados em estado mais grave poderiam ser retirados das ruas, se preciso com a ajuda de agentes da Guarda Civil Metropolitana.

Confronto na Cracolândia: bombas revidadas com pauladas e pedradas (Danilo Verpa/Veja SP)

Confirmada a necessidade de tratamento de emergência por uma junta médica, o Poder Executivo municipal requisitaria nova autorização judicial para submeter essas pessoas a terapias em centros do governo. O Ministério Público conseguiu barrar a ação. Em sua decisão sobre o caso, o desembargador Reinaldo Miluzzi afirmou que uma carta branca para a gestão recolher usuários coercitivamente “contrasta com o Estado democrático de direito”.

O episódio gerou um grande debate nos últimos dias entre especialistas. “A internação compulsória só deve ocorrer em situações extremas, nos casos de risco de morte por saúde debilitada”, afirmou o médico Drauzio Varella. “Não é a realidade de todos.” Promotor de Justiça da Saúde Pública, Arthur Pinto Filho exagerou na crítica, chegando a citar a hipótese de uma “caçada humana”. “Aqueles indivíduos não são zumbis, eles se tornam um durante o efeito do crack. No restante do tempo, é possível manter uma interlocução”, disse. Em nota, a prefeitura se defendeu: “Reiteramos que este é um instrumento a ser utilizado em última instância e com total respeito aos direitos humanos”.

Desde 2001, uma lei federal prevê as condições de internação involuntária ou compulsória — em ambos os casos, um psiquiatra deve atestar a necessidade de tratamento. Em nenhum deles, a pessoa pode ser retirada das ruas à revelia antes de ser examinada por médicos, como pleiteava a prefeitura. A internação involuntária depende da iniciativa de familiares e de um aviso ao Ministério Público. Nos últimos dois anos, o Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) do Bom Retiro, que atende a região da Cracolândia, contabilizou 1 434 registros do tipo (confira abaixo as histórias e dramas das famílias que usaram esse instrumento).

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A internação compulsória é a medida mais rara, pois não depende de autorização familiar. Ela ocorre quando
a Justiça, a pedido do Estado, determina o tratamento obrigatório do viciado, após o médico atestar que ele não tem domínio sobre si mesmo. “Cada um recebe o cuidado de acordo com sua necessidade. O juiz só decreta a internação compulsória quando não há mais alternativa”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do Recomeço, o programa estadual contra as drogas.

A polêmica sobre as possibilidades mais extremas de tratamentos a usuários deve continuar. Depois de recorrer sem sucesso do parecer do desembargador Reinaldo Miluzzi, a equipe jurídica de João Doria não desistiu da discussão. Estuda agora apelar ao Superior Tribunal de Justiça ou formular uma nova ação. “Precisamos de medidas mais efetivas”, defende o secretário municipal de Negócios Jurídicos, Anderson Pomini. “Esse pessoal não entende que a política do abraço nunca funcionou.”

“Tinha medo de perdê-lo”

Silval e a mãe, Valdivia Hette Borges (Davi Ribeiro/Veja SP)

Moradora de Santos, a aposentada Valdivia Hette Borges, de 71 anos, levou seis meses para decidir se internava ou não à força seu filho viciado em cocaína. “Tinha medo de perdê-lo. Vi que era a hora quando ele começou a vender objetos de casa e ter surtos de perseguição.” Na madrugada de 7 de janeiro de 2013, o rapaz foi acordado de supetão por cinco homens, que o levaram amarrado e algemado para uma clínica em Peruíbe, outro município do Litoral Sul. “Fui carregado como um lixo”, conta Silval Borges, 48, que trabalhava na vistoria de contêineres no porto. “Faltou diálogo com os meus pais, não precisava ter sido assim.”

Ele caiu em depressão profunda. Ficou seis dos nove meses de internação trancado no quarto. “Não gostei do lugar. Tinha de seguir a doutrina deles. Sou espírita e queriam que eu assistisse a sessões evangélicas.” Ao sair de lá, Silval viajou durante catorze dias para Maceió. Ao retornar a Santos, recaiu nas drogas. Em 2014, resolveu ir por conta própria à clínica Passos de Luz, em Itanhaém, onde passou 100 dias. “Fui recebido com amor e carinho”, diz. “Lá, tive um sonho com Nossa Senhora Aparecida. Ela dizia que minha família estava chorando por mim. Depois disso, nunca mais usei nada.”

“Eu me senti como um cão sendo levado pela carrocinha”

G.L: internação compulsória (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Com um estrondo, quatro socorristas de uma clínica particular invadiram o quarto da casa em que o confeiteiro G.L., de 31
anos, morava com a família, de classe média, no Butantã, na Zona Oeste. Com pés e mãos amarrados, ele foi carregado até
uma ambulância. Conduziram-no à força, então, para ser internado em São Roque, no interior. “Eu me senti como um cão sendo levado pela carrocinha”, relata. Era 2015 e G. havia voltado para casa logo após passar vinte dias em uma biqueira consumindo crack. “Tinha aberto mão de tudo.” Ficou três meses em tratamento. Assim que saiu teve uma recaída.

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Segundo ele, a culpa foi da “amargura” sentida em relação aos pais pelo episódio da internação. “Hoje, enxergo que precisava ter passado por aquilo para quebrar o ciclo desenfreado de uso. Caí na real”, diz. “Foi um jeito de me desvencilhar de uma namorada que só me fazia consumir mais.” A mãe, I.L., não se arrepende da resolução tomada com o marido após consultar um psiquiatra. “Era o que tinha de ser feito, ele já não decidia mais sobre a própria vida.” Depois de quatro internações por causa do vício, iniciado aos 16 anos com amigos de bairro, G. está desde março em novo tratamento. Desta vez, voluntário. “Eu me caso em setembro. Minha noiva está grávida e quero continuar bem por eles e por mim.”

“Fiquei com raiva”

Marcus Vinicius Leite: mantido em cativeiro na Cracolândia por dívida de 100 reais (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Era 2008. O advogado Marcus Vinicius Leite, 42, ligou desesperado para sua mãe de um hotel na região da Cracolândia. Traficantes o mantinham em cativeiro por causa de uma dívida de 100 reais em drogas. “Já perdi a conta do número de biqueiras em que entrei para resgatá-lo, mas esse dia foi assustador”, lembra a produtora cultural Sônia Maria Cardoso Leite, 65. Em outro episódio, em Salvador, terra natal da família, na tentativa dos parentes de interromper o uso que Marcus fazia de substâncias tóxicas, ele chegou a ser trancado no apartamento da avó, mas pulou da janela do 1º andar e quase atingiu a rede elétrica. Foi socorrido e, mesmo debilitado no hospital, fugiu atrás de drogas.

Iniciado no vício aos 19 anos em cocaína e depois em crack, Marcus passou por cinco internações, a segunda delas involuntária. “Chega uma hora em que ou você interna seu filho ou ele morre”, diz Sônia. “Fiquei com raiva, mas só assim me conscientizei do meu estado lamentável e vi que a dependência é uma doença”, afirma Marcus. Ele conseguiu ficar limpo de 2010 a 2014, mas teve uma recaída severa durante uma festa, após a finalização de seu doutorado em direito público na Argentina. Há nove meses está em reabilitação voluntária na clínica Fabian Nacer, no Butantã. “Sou outra pessoa”, comemora. Começou a estudar psicologia para poder ajudar outros dependentes químicos.

“As dores da abstinência são as piores que existem”

Júlio César de Oliveira: ele espera reencontrar a mãe (Leo Martins/Veja SP)

Quando entrou pela primeira vez no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) do Bom Retiro, em 2012, Júlio César de Oliveira, 31, chamou muita atenção. Portador de esquizofrenia, não conversava e tinha alucinações. Vivia na Cracolândia e perdera contato com a mãe e com os três irmãos. Passou, então, a frequentar o Cratod, onde recebia indicações de tratamento para seu vício em crack. Três anos depois, com sua condição agravada, foi internado compulsoriamente a pedido de psiquiatras do centro. A essa altura, já havia se submetido a tratamentos mais de vinte vezes, desde os 15 anos, alguns deles
à força.

Agora, ainda sob cuidados médicos, mora em uma casa de acolhimento do Estado. A vida vai aos poucos sendo reorganizada. Na semana passada, uma pequena vitória: Júlio foi sozinho a uma unidade do Poupatempo para refazer seu RG. Afirma que sente vontade de usar drogas mas desiste quando se lembra dos períodos de abstinência. “Os músculos do pescoço se contraem e as dores são as piores que existem”, diz. Entre seus desejos, o maior é reencontrar a mãe, que chegou a ser localizada por assistentes sociais mas, até o momento, não quis visitar o rapaz.

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“Gastei 400 000 reais em drogas”

J.E: vendeu de máquina de lavar a TV de LED para comprar drogas (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Formado em direito, o funcionário público aposentado J.E. viveu 28 de seus 51 anos consumindo crack. Enfrentou doze internações e calcula ter gasto cerca de 400 000 reais em drogas. Em sua antiga casa na Zona Leste, não restou nada. Ele vendeu de máquina de lavar a TV de LED. Até os pneus de sua picape, uma SS importada, da GM, foram trocados por entorpecentes. “Perdi meus princípios e me transformei em algo que nunca fui”, lamenta. Sua primeira internação involuntária se deu em 2015, por solicitação da família. “Esse tipo de tratamento pode ser importante para resgatar a identidade aos poucos, mas no meu caso não ajudou em nada.”

Ele passou por uma clínica em Atibaia que o aterrorizou. Foi posto em uma ala junto com pessoas esquizofrênicas e psicóticas e sofreu tratamento truculento. “Dormia em um espaço em que urinavam e defecavam no chão; os internos acordavam de
madrugada socando a parede. Quem não respeitava as regras era deixado de cueca e recebia água gelada”, diz. “Foi difícil pedir socorro, fazer minha família acreditar. Mas, depois de um mês, fui transferido.” Hoje, o rapaz se vê há três meses em novo
tratamento, desta vez voluntário. Conseguiu se habituar à nova rotina: fica na clínica durante o dia e à noite retorna para sua nova residência, na Zona Oeste.

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