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“A Vila Madalena não é moderna mais. O centro é”, diz Adriana Barbosa

Criadora da Feira Preta, festival de música e empreendedorismo negro há vinte anos, fala sobre negócios, preconceitos e transformações da cidade

Por Pedro Carvalho
19 nov 2021, 06h00

Em 2002, a paulistana Adriana Barbosa, 44, então frequentadora de festas de música black na Vila Madalena, ousou criar naquele bairro um encontro anual de empreendedores negros, a Feira Preta. O evento logo se mudaria dali, por culpa de uma vergonhosa resistência de empresários e moradores da região.

Chega agora à vigésima edição (entre 20 de novembro e 10 de dezembro) como um festival de música e negócios para 40 000 pessoas ao ano — em 2020 e 2021, feito pela internet devido à pandemia.

A empresária também comanda a Casa Pretahub, um co-working com estúdio fotográfico, gravações de podcasts e lojinha. Fica nos primeiros metros da Avenida Nove de Julho, bem no centro da cidade, abaixo de um prédio que andava com o térreo abandonado.

Como era a “cena black” da Vila Madalena vinte anos atrás, quando você fundou a Feira Preta, na Praça Benedito Calixto?

Havia uma cena ligada às escolas de samba Pérola Negra e Tom Maior, que ficam no bairro. Tinha também algumas festas black, com DJs e equipes técnicas dos primeiros bailes de black music da cidade, como a Chic Show, no Palmeiras. Quando a Feira Preta chegou ao bairro, trazendo negros mais ligados ao empreendedorismo, veio junto um estranhamento.

De qual tipo? Por parte de quem?

A gente sofreu uma grande resistência no bairro. A associação que faz a feira (de antiguidades) da Praça Benedito Calixto fez um abaixo-assinado e mandou para a subprefeitura (de Pinheiros). Diziam que não gostavam daquela cultura ali, que não queriam aquele movimento no local. A subprefeitura não deu mais autorização para o evento. Ficamos na praça só em 2002 e 2003.

O principal adversário era a associação da feira de antiguidades?

Sim, mas não só eles. Os moradores eram muito retrógrados. Imagina aquele bairro predominante branco, de repente vem uma feira que tem muita gente preta. A galera descia a Teodoro Sampaio a pé do metrô, vinham de caravana… Eles estranharam.

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Como vê a presença de jovens negros na Vila Madalena hoje?

Eu acho que essa galera não frequenta mais a Vila Madalena. A Vila já não é mais esse lugar da tendência, do hype, do novo. O centro é esse lugar. Mesmo festas como a Sintonia migraram para outros espaços. A Vila não se modernizou. Nos mapas da desigualdade, a maior concentração de população negra é em Cidade Tiradentes e Parelheiros, e uma das menores é em Pinheiros. A região não se reformulou no tempo.

Hoje, a Feira Preta tem patrocínios de grandes marcas. No que as empresas ainda erram em questões raciais?

Ainda olham para nós só pela perspectiva social — e não do negócio, do business, do dinheiro. Quando nos veem pela ótica da responsabilidade social, existe uma limitação de recursos (que as marcas destinam a projetos). A última edição presencial (em 2019) atraiu mais de 40 000 pessoas. É enquadrada hoje como um grande evento. Mas, para o mercado, não é vista assim. Se pegar qualquer mapa de festivais do Brasil, não tem a Feira Preta, que é um festival com artistas como Elza Soares, Emicida, Criolo. O investimento das empresas não é o mesmo que em outros festivais. A verba de uma marca para fazer uma ação no (festival) Coala jamais vai ser a mesma que na Feira Preta — porque a empresa vai colocar a gente na caixinha da diversidade, da responsabilidade social.

Como a Feira Preta, do ponto de vista do negócio, passou a pandemia?

Angustiada. No perrengue. Como quase todo mundo — pelo menos quem está na base da pirâmide. A gente focou na transformação digital do evento. Fazer contratos digitais, automatizar processos, viabilizar formações on-line, fotografar os produtos (para a venda na internet), produzir conteúdos para os empreendedores… A Casa Pretahub (no centro) serviu a esse propósito.

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“As empresas nos veem só como responsabilidade social, não como negócio. A Feira Preta atrai 40 000 pessoas, mas não é considerada um ‘grande evento’ pelas marcas”

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As vendas on-line (em 2020) se sustentaram em comparação com os eventos presenciais anteriores?

Na última edição presencial, a gente reuniu 170 empreendedores, que venderam perto de 800 000 reais. No ano passado, no modo on-line, tivemos quase 200 empreendedores e a venda ficou próxima a 700 000 reais.

O evento já passou dificuldades financeiras. O que faria diferente?

Em 2015 a gente quebrou, porque precisa mos mudar de local (saíram do Anhembi para um espaço novo, na Casa Verde). Planejamos atrair 12 000 pessoas e foram somente 4 000. Fiquei dois anos para pagar as dívidas, foi um inferno. Eu tinha um padrão classe média, morava em Santana. Fui para uma quitinete de 39 metros quadrados na República, onde vivia com minha avó e minha filha. Pessoas me emprestaram dinheiro para comer, fui ao fundo do poço. Se pudesse, teria estudado empreendedorismo logo no início, para aprender a negociar, precificar, fazer planilha, balanço.

Como conseguiu se reerguer?

As coisas melhoraram em 2017, quando a Secretaria Municipal de Cultura passou a nos ajudar, por iniciativa do André Sturm (ex-secretário) e do Ismael Ivo (ex-diretor do Teatro Municipal, morto em abril após contrair Covid-19). Naquela época, a feira se tornou um evento oficial do município. A prefeitura pagava estruturas como o palco dos shows. Ocupamos o centro, o Municipal, o IMS, o Instituto Tomie Ohtake… Tivemos esse apoio por dois anos, enquanto durou a gestão Sturm. Depois, conseguimos patrocínios como o Itaú e o Facebook.

A Aline Torres, nova secretária de Cultura, também é negra. A prefeitura poderia voltar a ajudar?

A Aline é ótima, acabou de chegar ao cargo. Mas a prefeitura criou um evento próprio (a Expo Consciência Negra), que acontece no mesmo lugar (no Anhembi) e data (dia 19) que a Feira Preta (que começa no dia 20). No ano que vem, vamos precisar mudar o dia, para não conflitar com esse novo evento.

Que empreendedores negros de moda e gastronomia os paulistanos não podem deixar de conhecer?

O Isaac Silva, estilista que entrou na Fashion Week recentemente, tem uma loja na Vila Buarque maravilhosa. Em gastronomia, recomendo o Rap Burguer, na Rua Augusta, onde os sanduíches têm nome de artistas de rap. Tem também o Utomi, um vegano de um imigrante de Moçambique, no Belém.

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Publicado em VEJA São Paulo de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765

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