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São Paulo nas Alturas

Por Raul Juste Lores Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Redator-chefe de Veja São Paulo, é autor do livro "São Paulo nas Alturas", sobre a Pauliceia dos anos 50. Ex-correspondente em Pequim, Nova York, Washington e Buenos Aires, escreve sobre urbanismo e arquitetura
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“Centro natural e turístico”, Guarapiranga vive cenário de abandono

Aberta pela antiga Light em 1908, a represa tem 26 quilômetros quadrados e, há exatos 100 anos, projetos para região são prometidos

Por Raul Juste Lores Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 13 nov 2020, 11h46 - Publicado em 13 nov 2020, 06h00
Ruínas do antigo Santapaula Iate Clube: trinta anos de abandono
Ruínas do antigo Santapaula Iate Clube: trinta anos de abandono (Raul Juste Lores/Veja SP)
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O cenário de abandono do antigo clube Santapaula, as ruínas de uma obra prima do arquiteto Vilanova Artigas e as dezenas de imóveis vazios à beira da Guarapiranga contrastam com a riqueza da campanha eleitoral por ali. Nem o domingo ensolarado atrai visitantes para o mar paulistano e para os poucos botecos sobreviventes.

Mas há cabos eleitorais bem pagos e pôsteres por todos os lados do vereador Milton Leite, homem forte da Câmara, de Ricardo Nunes, candidato a vice de Bruno Covas, e de Jilmar Tatto, prefeiturável petista. Os vizinhos dizem que os três são muito poderosos na Zona Sul, mas o atraso do antes chamado “centro natural e turístico” da cidade mostra que ter padrinho influente não é tudo.

Aberta pela antiga Light em 1908, a represa tem 26 quilômetros quadrados, ou mais de vinte Ibirapueras, com muitas margens ainda verdes. Há exatos 100 anos, projetos turísticos são prometidos. Com o real derretendo e a vacina que não chega, o paulistano teria muito a ganhar no entorno da Guarapiranga quando tanta gente está impossibilitada de viajar.

Google Maps Guarapiranga
Hotel, centro de convenções, clube e marina: projetos diversos que se esfarelam (Reprodução Google/Divulgação)
Guarapiranga domingo
Pouco público: nem o domingo de sol atrai muitos paulistanos confinados na cidade (Raul Juste Lores/Veja SP)

O engenheiro britânico Louis Romero Sanson até trouxe areia da praia de Santos para dar origem ao chamado balneário-satélite na década de 30, com casas, comércio, bulevares, hotel e igreja. Sanson, que também participou da criação da Represa Billings e do Aeroporto de Congonhas, contratou o urbanista Alfred Agache para desenhar o bairro entre as duas represas (“Interlagos”) e implantou o autódromo na região.

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Imigrantes, como as famílias dos fundadores das cervejarias Brahma e Antarctica, instalaram casarões ali. Um hotel-cassino prometido para o local onde hoje estão as ruínas destas fotos foi projetado no início dos anos 1940, inviabilizado pelas convicções católicas da mulher do presidente Dutra, que proibiu o jogo no país.

Nos anos 1950, o projeto do Grande Hotel Interlagos, elaborado pelo polonês Mieczyslaw Grabowski com treze andares, foi atropelado pela inflação do governo Juscelino, e a obra parou no 4º andar. Foi vendido ao incorporador Adelino Boralli em 1961, que já tinha criado vários clubes e loteamentos no interior, e que pensou para ali o Santapaula Iate Clube (também foi dono do Quitandinha, em Petrópolis).

Boralli contratou o arquiteto Vilanova Artigas para reformar e adaptar o prédio inacabado de quatro andares, desenhar três piscinas (uma delas, com 1 200 metros quadrados e 4 metros de profundidade) e projetar a sede náutica às margens da represa, com garagem para barcos, oficina, posto de combustível e bombas para abastecimento direto, além de um bar com vista marítima. Até um túnel foi criado para ligar clube e embarcadouro sob a avenida, asfaltada pelo próprio empresário (que seria batizada depois de Atlântica e Robert Kennedy, e, hoje, Atlântica de novo). Enquanto isso, a represa recebeu as modalidades náuticas dos Jogos Pan-Americanos realizados em São Paulo em 1963. Tudo caminhava para um grande destino turístico.

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Inaugurado no fim de 1965, o clube teve pelo menos uma década de glória, com shows de Roberto Carlos e Agnaldo Rayol, corridas náuticas, dez canchas de boliche, salão de jogos e restaurantes.Na década de 80, a exploração desordenada ao redor da represa, o trajeto cada vez mais caótico e a crise dos clubes sociais varreram o Santapaula. O conjunto está vazio há mais de trinta anos. Tombada desde 2002, a chamada garagem de barcos, marco da obra de Artigas, já tem seu concreto se desfazendo, com as ferragens à mostra, e infiltrações por todos os lados.

Um grupo que atua nos ramos imobiliário e têxtil dono do imóvel conseguiu aprovar em 2010 nas instâncias de patrimônio histórico a adaptação do conjunto em um centro de convenções e hotel, além de um restaurante, projetados pelo arquiteto Mauricio Xavier, do escritório Xavier e Travaglia, que já estariam abertos para a Copa de 2014.

Obedecendo à maldição que cercou os bilionários eventos esportivos da década passada, nada saiu do papel. Diferentes zoneamentos proibiram novos comércios no empreendimento, como “zona estritamente residencial”, com a represa para bem poucos. O hotel poderia ter no máximo cinco andares. O arquiteto já perdeu as contas das reuniões na prefeitura para conseguir aprovar os usos que viabilizariam o investimento milionário para recuperar o complexo.

O bairro foi tombado em 2004 e moradores de mansões sobreviventes admitem que não veem com bons olhos a transformação do patrimônio abandonado em centro hoteleiro e de eventos. A construção de 40 000 metros quadrados é rotineiramente invadida e desocupada, e seus muros, empapelados pelas ricas campanhas eleitorais, viraram ponto de prostituição, como as dezenas de preservativos usados ao redor comprovam.

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Concreto Guarapiranga
Degradação: concreto se deteriora no iate clube projetado por Artigas (Raul Juste Lores/Veja SP)
Propaganda Política Guarapiranga
Propaganda: imóveis vazios à beira da Guarapiranga contrastam com a riqueza da campanha eleitoral (Raul Juste Lores/Veja SP)

A estrutura de 70 metros de largura que emoldura a represa em seus vãos horizontais até pediria um projeto arquitetônico mais ousado — as ilustrações aqui revelam um mezanino de vidro com bancos que combinam mais com a de um hotel corporativo qualquer do que com um ícone brutalista às margens de uma represa.

Imagina a beleza que sairia de um Tadao Ando, um Campo Baeza ou um Siza intervindo sutilmente ali? Ainda assim, seria uma enorme transformação para uma área tão carente de empregos e de segurança, com águas poluídas (sem uma pressão política para cuidar delas, que poderia aumentar junto com uma nova frequência), e desperdiçada. Quem sabe passadas as eleições os caciques locais não se mexam para destravar a permanente lentidão com que projetos similares são avaliados na cidade? Investidores também desistem.

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Publicado em VEJA São Paulo de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713

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