Jair Rodrigues não merecia “Jair em Disparada”
Carismático, bonachão, dono de uma bela voz e figura relevante, sim, da verdadeira música popular brasileira. Jair Rodrigues é daquelas pessoas que quando você chega perto fica na dúvida de até que ponto não está diante de um personagem. E perdoe-me talvez a ingenuidade, mas na única vez em que o entrevistei saí com a […]
Carismático, bonachão, dono de uma bela voz e figura relevante, sim, da verdadeira música popular brasileira. Jair Rodrigues é daquelas pessoas que quando você chega perto fica na dúvida de até que ponto não está diante de um personagem. E perdoe-me talvez a ingenuidade, mas na única vez em que o entrevistei saí com a sensação de que o cara é assim mesmo. Um sujeito do bem, brincalhão, meio criança, meio gente grande. Pois na terra do teatro musical – e na cidade que luta arduamente para reinar como capital do gênero – chegou a vez de Jair Rodrigues, 73 anos, virar tema de um. As biografias são exploradas exaustivamente no palco. Tim Maia, Elis Regina, Cartola, Cauby Peixoto, Renato Russo e por aí vai… Veículo promissor para uma impactante interpretação do protagonista, uma história pronta para ser posta no papel, só necessitando de um mínimo de competência e talento, e o interesse quase certo do público sedento por produções em que não falta glamour. Quase sempre, ok…
Desde o dia 7 de setembro, “Jair em Disparada” está em cartaz no Teatro Brigadeiro, o antigo Jardel Filho. A estreia foi atribulada. Na véspera, a atriz Claudia Ohana, escalada para interpretar Elis Regina, desligou-se do elenco com a justificativa de compromissos na Rede Globo, com o quadro “Dança dos Famosos” do Faustão. Sua foto continua no cartaz. Entrou às pressas Carol Bezerra, que já havia feito bonito na pele de Elizeth Cardoso no espetáculo sobre Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Com uma dramaturgia capenga, erros de pesquisa e um repertório discutível, o musical escrito por Flavio Kenna e dirigido por Sebah Vieira repassa parte da vida e obra do artista. Não vai além de uma montagem improvisada, com cenários e figurinos toscos, que só se aproxima de um musical de verdade quando se vê a existência de uma orquestra no palco. Canções como “Disparada”, “Deixa Isso pra Lá”, “Majestade, o Sabiá”, “Tristeza” e “A Banda” figuram no repertório sob a direção musical de Elias Jô. Durante esses números, casais de bailarinos improvisam coreografias despidas de técnica, precisão e qualquer graça. Só por ser tão gente boa – nem vou falar de seu talento –, Jair Rodrigues poderia ter comemorado cinquenta anos de carreira sem esse presente de grego.
Na pele do protagonista, o ator Luciano Quirino esforça-se o quanto pode, mas entrega os pontos diante da frágil dramaturgia e dos diálogos não apenas previsíveis, mas artificiais de tão bobos e rasteiros. A narração praticamente domina a montagem, com raras interações entre os personagens. Não existem soluções cênicas ou uma linguagem que se encarregue de transformar situações ou palavras em imagens, como prega o bom teatro. E, nesse ponto, Quirino fica realmente prejudicado. Ele não esconde as limitações como cantor – e nem teria como fazer isso –, ficando de mãos atadas, já que o personagem é bem mais explorado em seus dotes vocais que dramáticos. Por sorte, extrai alguma graça da faceta bem-humorada de Jair. Explícita é a intenção do texto de privilegiar Elis Regina, oferecendo a ela um espaço que transcende a parceria da dupla no programa de televisão O Fino da Bossa. Elis surge em cena, lá em 1965, já cantando “Águas de Março”, que gravaria apenas em 1972, e por aí vai apresentando aleatoriamente “Atrás da Porta” (1972), “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” (1974) e “Como Nossos Pais” (1975), sem qualquer conexão cronológica ou de carpintaria. Amiga do Cachorrão (o apelido de Jair), a Pimentinha, no entanto, reviraria os olhos ao saber que a data de sua morte é informada de forma equivocada. No último sábado, dia 15, o público presente no Teatro Brigadeiro ouviu que Elis faleceu em 22 de janeiro de 1982 e não no dia 19 daquele mês e ano, a informação correta.
O Brasil comprovou nessa última década que pode e sabe produzir musical. Os artistas se preparam incansavelmente para chegar a um nível próximo ao da Broadway. Bem… Esse papo está mais que falado. O público entendeu a mensagem e, como resposta, aprendeu a aplaudir o que é (normalmente) bom e paga caro por aquilo que quer ver. Dessa forma, espera-se um mínimo de qualidade. Mesmo pretendendo narrar a vida de alguém tão carismático como Jair Rodrigues – e até por isso – produções precárias como essa não têm vez nesse mercado. Ninguém merece. Muito menos o Jairzão.