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Projeto de expansão das ciclovias custa mais que o triplo do previsto

Os projetos de ciclovias e ciclofaixas da cidade custam em média 650 000 reais por quilômetro construído, mais que o triplo do previsto pela prefeitura. Essa é só uma das questões mal explicadas do programa

Por Aretha Yarak e Silas Colombo
Atualizado em 1 jun 2017, 17h04 - Publicado em 6 fev 2015, 23h00

 

O investimento em faixas exclusivas para bicicletas pode ser considerado um termômetro moderno do grau de civilidade de uma metrópole. Entre outros benefícios, a política representa uma ferramenta para melhorar o fluxo no trânsito, a qualidade de vida da população e a paisagem urbana.

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São Paulo finalmente acordou para essa tendência mundial com a chegada de Fernando Haddad ao Edifício Matarazzo, em janeiro de 2013. Até então, a capital possuía apenas 63 quilômetros de pistas do tipo. A partir de junho de 2014, o atual prefeito bateu recordes de execução de projetos na área e transformou o negócio em uma das principais bandeiras de sua administração.

Entre ciclovias (trajetos segregados dos carros por alguma barreira física) e ciclofaixas (feitas apenas com a pintura do asfalto), ele entregou 156 quilômetros, aumentando a malha daqui para mais de 200 quilômetros. A marca deve subir caso ele cumpra sua promessa de campanha de fazer outros 244 quilômetros até ofim de 2015. Chegaríamos assim perto da faixa dos 500 quilômetros.

marginal pinheiros - ciclovia
marginal pinheiros – ciclovia ()
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Dessa forma, São Paulo fica mais próxima do compasso de outras grandes cidades estrangeiras. Berlim, na Alemanha, e Nova York, nos Estados Unidos, possuem malhas de 620 e 543 quilômetros, respectivamente. Lá fora, a conquista de espaço para os ciclistas não foi pacífica e gerou vários protestos em regiões mais povoadas. Em São Paulo não tem sido diferente, com problemas verificados em bairros como Moema e Higienópolis, onde comerciantes e moradores protestaram e exigiram mudança nos traçados.

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Pode-se dizer, no entanto, que esses problemas foram pontuais. Prova disso é que a iniciativa conta com a simpatia da maioria da nossa população. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em setembro do ano passado, quase 80% dos paulistanos apoiam a ideia (no domingo, 8 de fevereiro, uma nova sondagem do instituto apontava queda no índice, para 68%). “Para minha surpresa, foi muito mais rápido do que eu imaginava. Esperava que o apoio viesse em quatro, cinco, seis anos”, afirmou Haddad na época. Seu objetivo é viabilizar uma alternativa real de transporte na capital e proteger quem pedala da barbárie do trânsito.

Entre 2013 e 2014, registrou-se uma diminuição de 15% no número de acidentes com ciclistas por aqui. O volume de casos no ano passado ainda foi alto (596, sendo 32 fatais), mas a tendência é que ocorra uma redução mais rápida do problema com a ampliação do programa municipal.

ciclovia faria lima
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Embora muitíssimo bem-vinda, a política de abrir rotas ao transporte sobre duas rodas não pode virar uma caixa-preta em termos de orçamento, incluindo atalhos obscuros na contratação de empresas e no uso do dinheiro público. Em outros termos, São Paulo precisa de ciclovias, mas não a qualquer custo.

Quando anunciou seu plano para a área, o prefeito planejava gastar 80 milhões de reais para criar na capital 400 quilômetros exclusivos para bicicletas (somando ciclofaixas e ciclovias). Isso dá uma média de 200 000 reais por quilômetro. Esse orçamento inicial, no entanto, tem tanto valor hoje quanto um pneu furado.

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Até agora, saíram dos cofres municipais 39 milhões de reais para fazer 156 quilômetros. Conclusão: o município consumiu quase metade do orçamento previsto para fazer pouco mais de um terço do projeto. As maiores obras em andamento (21 quilômetros, que incluem as ciclovias das avenidas Paulista e FariaLima, entre outras) vão totalizar mais 77 milhões de reais em investimentos (part eda dinheirama já está sendo gasta).

Somando-se os trechos entregues e as pistas em construção, a prefeitura vai gastar em 177 quilômetros de vias um total de 116 milhões de reais, o equivalente a cerca de 650 000 reais por quilômetro. Como outros trechos devem sair do papel até o fim deste ano, de modo a totalizar os 400 quilômetros prometidos, a conta vai ficar ainda maior. “Teremos de pedir mais dinheiro”, reconhece Tadeu Leite Duarte, diretor de planejamento, projetos e educação da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), um dos órgãos municipais responsáveis pelos projetos.

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O total de 650 000 reais é mais que o triplo do gasto previsto incialmente por Haddad. É também superior à média mundial de 300 000 reais por quilômetro, conforme apuração de um time de correspondentes de VEJA SÃO PAULO no exterior.Os dados foram obtidos durante entrevistas com profissionais dos departamentos de trânsito de dez cidades estrangeiras que são referência em investimentos nessa área (veja o quadro abaixo). A cada uma dessas fontes, os jornalistas pediram um cálculo em valores atualizados sobre o custo médio de construção por quilômetro de faixas exclusivas para bicicletas (incluindo ciclovias e ciclofaixas).

quadro ciclovia mundo
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Comparando-se o custo da malha de Haddad com o de circuitos similares forado país, São Paulo desponta como a mais cara no ranking que inclui metrópoles como Paris, na França, Madri, na Espanha, e Copenhague, na Dinamarca. Mesmo fora da Europa, a pista da prefeitura continua acima da média. Vale mais que o dobro da de Bogotá, na Colômbia, por exemplo.

Nas comparações com obras semelhantes no Brasil, acontece o mesmo. São Paulo fica à frente de capitais como Curitiba e Porto Alegre. Segundo a prefeitura daqui, cerca de 95% das obras entregues desde o ano passado são trechos feitos basicamente com pintura no chão e sem pavimento próprio. 

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Empresas do mercado consultadas por VEJA SÃO PAULO garantem que esse serviço sai bem mais barato que os 200 000 reais previstos pelo governo municipal. A reportagem fez cotação com três companhias especializadas da cidade. Elas só aceitaram mandar o orçamento com a condição de seu nome permanecer em sigilo, por estarem participando de outros processos licitatórios.

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Para calcularem os preços, usaram como valores de referência para as matérias primas e o custo de implementação as médias definidas no Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi). Segundo as fontes consultadas, o quilômetro de pista custaria em torno de 105 000 reais, incluindo a margem de lucro do serviço. Esse valor fica um pouco mais próximo do padrão de Nova York. Por lá, os trechos mais simples, feitos com pintura no asfalto, saem em média por 140 000 reais, segundo o Departamento de Transportes da cidade americana.

A proliferação de ciclovias pela cidade, sem que nenhum documento passasse por fiscalização prévia, chamou a atenção do Tribunal de Contas do Município (TCM). Desde setembro do ano passado, o relator de Transportes e vice-presidente da corte, Edson Simões, tenta receber as informações dos contratos da era Haddad. Até agora, teve acesso completo apenas aos papéis relativos às ciclovias da Avenida Paulista e da Rua Amaral Gurgel (sob o Minhocão).

Juntas, elas somam 8,8 quilômetros e investimentos de 22 milhões de reais. Com base nos dados fornecidos, o TCM finalizou há duas semanas um relatório com onze volumes de documentos que lista uma série de irregularidades. VEJA SÃO PAULO teve acesso com exclusividade ao material em que sobressaem pontos como a ausência de análise sobre a viabilidade e o impacto no trânsito dos projetos.

Além disso, eles não estão centralizados na CET, mas pulverizados por diversas secretarias, incluindo a do Verde e Meio Ambiente, a de Coordenação de Subprefeituras e a de Infraestrutura Urbana. “Isso dificulta a fiscalização”, diz Simões.

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O maior dos problemas encontrado pelo relator, no entanto, envolve a forma de contratação das empresas responsáveis pelas obras. Ela ocorreu por ata de registro de preço, uma ferramenta criada para agilizar despesas menores e rotineiras do município, a exemplo da compra de material de escritório para repartições públicas ou do pagamento de serviços como a manutenção de semáforos.

Pelo sistema de ata, a prefeitura promove uma única licitação, que vai definir o melhor preço de compra. A partir daí, firma acordos para a aquisição dos produtos durante determinado período. Segundo relatório do TCM, o uso do instrumento para viabilizar ciclovias e ciclofaixas é ilegal. Essa conclusão é baseada em leis como a municipal número 13 278, de 2002, que diz que “o fornecimento de materiais em geral e a prestação de quaisquer serviços, em ambos os casos, desde que habituais ou rotineiros, poderão ser contratados pelo sistema de registro de preços”.

Outros especialistas têm a mesma interpretaçãodo TCM. “Obras para a implementação de vias para bicicletas não são algo rotineiro”, afirma Antônio Cecílio Pires, professor de direito administrativo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Além disso, acarretam uma transformação do espaço público. O mais certo seria abrir licitações pontuais.”

A prefeitura diz que fez tudo dentro da lei. “O uso da ata é correto, pois a construção de ciclovias não é obra, e sim ajuste no sistema de trânsito”, argumenta Tadeu Duarte, da CET. “Para implementá-las, é preciso apenas modificar a sinalização viária e fazer alterações geométricas nas vias, quando necessário.”

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Coerentemente com esse raciocínio, os contratos em questão não discriminam em nenhum ponto a execução de faixas exclusivas para bicicletas. Eles falam genericamente em “execução de projeto para sinalização semafórica” e “reconfiguração geométrica e serviços complementares”. 

Uma das companhias que enviaram proposta para fazer o trabalho da Paulista, a Serttel Ltda., com sede em Pernambuco, foi pega de surpresa pela desqualificação da concorrência. Sem saber que teria de fazer uma ciclovia, apenas apresentou o orçamento para a readequação de semáforos.

tabela ciclovia brasil
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O vencedor do processo da Paulista, que vai custar 15 milhões de reais, foi o Consórcio Semafórico Paulistano, formado pelas empresas Arc Indústria e Comércio, Meng Engenharia e Sinalronda, todas de São Paulo. Ele está inscrito na Junta Comercial desde 19 de maio de 2014. O documento informa que sua sede fica na Rua Siqueira Bueno, 35, no Belenzinho, na Zona Leste. Trata-se do endereço de um edifício residencial, o Luzia Costa. 

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 Na manhã da última terça (3), a reportagem de VEJA SÃO PAULO esteve no local e falou com alguns moradores e funcionários. Ninguém sabia da existência de um Consórcio Semafórico Paulistano no lugar. Por meio de uma nota oficial, a empresa afirmou que o responsável pelo registro na Junta cometeu um equívoco. A sede, na verdade, ficaria dentro de um galpão nas redondezas, onde se realizam algumas atividades da Arc Indústria.

Os trabalhos na Paulista começaram em 5 de janeiro. Com a ajuda de três escavadeiras e de quarenta operários, grande parte do canteiro central, do número 1 313 ao 2 200, já foi destruída para dar lugar à futura pista. Ao todo, ela terá 3,8 quilômetros e vai ocupar ao menos 50 centímetros das faixas de rolagem dos carros. Oito relógios de rua, seis postes de iluminação e três totens de semáforos terão de ser realocados.

ciclovia plano de meta faria lima
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Grades também serão instaladas em alguns trechos nas laterais da via, especialmente nas pequenas rampas de concreto que levarão os ciclistas para o nível da rua nos cruzamentos, para ampliar sua segurança. Parece algo muito maior que os “ajustes no sistema viário”, como defende a CET.

“A própria prefeitura denomina o que está fazendo na Paulista como uma obra. É só olhar os cartazes que estão espalhados por perto: eles dizem ‘obra’. Além disso, há uma equipe lá realizando uma alteração do espaço público. A calçada vai ficar de outro tamanho, de outro jeito”, questiona Antônio Cecílio Pires, da Mackenzie.

Embora seja o projeto de maior visibilidade, o da Paulista não é o mais caro do pacote de Haddad. Esse posto cabe ao circuito da Operação Urbana Faria Lima: cada um dos 12 quilômetros do traçado custará cerca de 4,5 milhões de reais, totalizando um empreendimento de 54 milhões.

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A título de comparação, um estudo do Departamento de Transportes de Nova York publicado em setembro do ano passado mostrou que as ciclovias mais caras daquela metrópole foram as da Columbus Avenue (entre as ruas 96 e77), Broadway (entre 23 e 18), 2nd Avenue (entre 2 e 14) e novamente outra faixa na 2nd Avenue (entre 23 e 32). Elas foram instaladas entre 2010 e 2011 e custaram aproximadamente 1 milhão de reais por quilômetro.

Em 11 de abril de 2014, a Secretaria Municipal de Coordenação das subprefeituras (SMSP) assinou seis contratos com a empresa Jofege Pavimentação e Construção para a realização da ciclovia Faria Lima. A via a ser erguida no canteiro central deve ligar a Ceagesp ao Parque do Ibirapuera, passando por avenidas importantes como a Faria Lima e a Hélio Pellegrino. Mas o trecho entre o Largo da Batata e a Praça Apecatu já existe e está em operação desde 2012. Dessa forma, seria o primeiro caso mundial de uma ciclovia construída sobre outra.

Passados cinco meses, os trabalhos acabaram sendo paralisados pela prefeitura, após o TCM apontar a duplicidade do traçado. O embargo atingiu apenas 2,5 quilômetros (o restante do trajeto continua em obras, com previsão de conclusão em outubro). Curiosamente, a pista instalada custou um décimo da nova, orçada em mais de 15 milhões de reais. Coincidência ou não, nos últimos dias foram retiradas do ar as informações sobre o projeto de 12 quilômetros da Faria Lima na área do site da prefeitura em que é detalhado o plano de metas da gestão para ciclovias.

ciclovia afonso de sampaio
ciclovia afonso de sampaio ()

Para avaliar os melhores e os piores trechos da malha atual da metrópole, a reportagem de VEJA SÃO PAULO percorreu, na semana passada, mais de 200 quilômetros do sistema. Cerca de 60% dos locais avaliados apresentavam problemas de pavimentação, como rachaduras e buracos no asfalto. Das 82 ciclovias e ciclofaixas, quarenta tinham longos trechos com falhas na conservação da tinta aplicada no chão. Na região central, foi preciso travar uma batalha com as centenas de pedestres que invadiam as vias.

A maioria das faixas aparenta não ter muita utilidade prática como transporte público. A de Mirandópolis, na Zona Sul, por exemplo, tem 200 metros de extensão e ocupa somente um quarteirão da Rua Guapiaçu. Os melhores trechos em funcionamento estão localizados nas avenidas Eliseu de Almeida e Faria Lima e no Rio Pinheiros, todos na Zona Oeste, com piso bem conservado, boa sinalização e fluidez.

Essas são justamente as ciclovias que apresentam o maior número de usuários. A da Faria Lima recebe cerca de 1 700 ciclistas por dia, segundo estimativas da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade). A prefeitura não tem pesquisas atualizadas sobre o nível de utilização das faixas da cidade.

ciclovia praça vilaboim
ciclovia praça vilaboim ()

Depois de terminar a auditoria sobre as obras da Paulista e da Amaral Gurgel, o relator Edson Simões enviou à prefeitura, em 26 de janeiro, os ofícios EES-2003/15, EES-2004/15 e EES-2005/15. A Secretaria de Transportes, de Jilmar Tatto, tem até a próxima terça (10) para apresentar explicações ao TCM. Porta-voz do governo municipal para o programa,Tatto negou-se a falar com VEJA SÃO PAULO a respeito do assunto.

Limitou-se a enviar a seguinte nota à redação: “Estamos atuando conjuntamente com outras secretarias, como a de Subprefeituras e a de Obras, quando necessário, para a implementação da rede cicloviária na cidade. O cumprimento da meta de 400 quilômetros está assegurado”.

Procurado pela revista, Fernando Haddad também não falou sobre o assunto (sua assessoria alegaou falta de tempo na agenda). Se a prefeitura não convencer o TCM da legalidade dos contratos, as obras correm o risco de ser suspensas e o Judiciário pode pedir a devolução das quantias que considerar superfaturadas .É fundamental esclarecer o caso. As ciclovias merecem aplausos, mas a pista precisa estar limpa.

* Colaboraram Felipe Neves e Juliene Moretti

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