Para muitos motoristas, ter um Porsche na garagem é um grande sonho de consumo. O advogado Sergio de Magalhães Filho, de 68 anos, exagerou na dose, tornando-se proprietário de nada menos que 26 veículos da cultuada marca alemã. Dá para sair na rua com praticamente um carro diferente por dia durante o mês, sem repetir nenhum. Sergio é hoje um dos maiores colecionadores desses modelos na América Latina, fato reconhecido pela matriz dos veículos na Europa. A história começou em 1974, com a aquisição de um 911 Carrera. Sua última compra, realizada no ano passado, foi um Boxter RS 60, de 380.000 reais.
Outra aquisição recente, um Panamera 4S, passou por um processo de customização em Stuttgart, na sede da montadora, ganhando cor verde e freios de cerâmica. Saiu por 1,5 milhão de reais. “Ao mesmo tempo em que pode ser acelerado em até 300 quiômetros por hora, ele oferece docilidade suficiente quando quero usá-lo para levar minha mulher ao mercado, por exemplo”, conta. O título de mais antigo da frota pertence a um 356, fabricado em 1955. Para cuidar desse precioso acervo, o proprietário dispõe de uma espécie de mecânico particular, chamado carinhosamente por ele de “primeiro-ministro”. O profissional se encarrega de manter as máquinas em funcionamento e fazer sua manutenção. Os cuidados incluem deixar os bancos protegidos por uma capa quando os bólidos não estão sendo utilizados.
São Paulo está longe de ser o melhor lugar do mundo para ter esportivos do tipo, por causa do asfalto ruim e dos buracos, que vivem danificando as rodas. Apesar desses contratempos, o dono da frota revela, orgulhoso, as reações que costuma provocar no trânsito da capital quando está guiando uma de suas peças. “Em alguns locais, os manobristas chegam a abrir espaço para eu colocar o meu automóvel na porta”, diz o advogado.
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Personagens como o colecionador de Porsche integram a turma cada vez mais numerosa de clientes que ajudam a fazer a alegria das importadoras de veículos na metrópole. Devido aos anos seguidos de crescimento econômico do país e à queda no preço do dólar diante do real, criou-se um ambiente muito favorável para o negócio. Com isso, o número de carros vindos de fora bateu uma série de recordes nos últimos tempos. A capital paulista, de longe, representa o maior mercado nacional do setor.
Em 2010, as vendas por aqui chegaram a 7.100 unidades. Neste ano, somente até outubro, haviam sido comercializados 7.578 modelos. Quase todas as principais marcas estrangeiras criadas para o segmento de luxo já atuam em nosso território. São elas as alemãs Audi, BMW, Mercedes-Benz e Porsche, as italianas Ferrari e Maserati, as inglesas Jaguar e Land Rover e a japonesa Lexus. Só nos últimos três anos chegaram representações oficiais das italianas Lamborghini e Pagani, da holandesa Spyker e das inglesas Aston Martin e Bentley. Mais recentemente, em outubro, outra grife britânica dessa área, a mítica Rolls-Royce, anunciou o seu desembarque. Em março de 2012, prevê iniciar as vendas com o modelo Ghost, ao preço de 2,2 milhões de reais.
Quase todas as montadoras estrangeiras de modelos premium ou suas representantes fincam bandeira nas redondezas do bairro do Jardim Europa, um Salão do Automóvel permanente a céu aberto. A escolha da localização ocorre para aumentar a proximidade com os consumidores. Parte expressiva do que trazem do exterior para cá é vendida no estado, especialmente na capital. “Nossos clientes estão muito concentrados aqui”, confirma Ivan Fonseca e Silva, presidente da Aston Martin no país. A JATO Dynamics do Brasil, multinacional do setor de pesquisa e consultoria da indústria, deu números ao fenômeno. Segundo um estudo recente elaborado pela empresa, a cidade representa 30% do mercado nacional dos veículos de luxo.
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A única nuvem negra no horizonte das companhias da área nos últimos tempos ocorreu com o anúncio por parte do governo federal do aumento de 30% do IPI para automóveis vindos de fora do Mercosul, que entrará em vigor a partir de dezembro. “A medida terá um impacto maior nas opções de até 40.000 reais, como as ofertas trazidas pelos chineses”, afirma João Carlos Rodrigues, da JATO Dynamics. Em outros termos, as joias do olimpo automotivo devem pairar acima dos problemas que atingem os reles mortais.
Outro fator que mantém o otimismo dos executivos ligados ao setor é o tamanho do mercado. A despeito da evolução registrada no passado recente, estimativas indicam que ainda há uma margem confortável para os negócios continuarem seguindo em ritmo acelerado. “Dos mais de 3 milhões de carros vendidos por ano no Brasil, as marcas premium representam apenas 0,5%”, lembra João Carlos Rodrigues. “Em outras grandes economias emergentes, a participação deles é de 1% no bolo de vendas. Teoricamente, portanto, há potencial para dobrar de tamanho num futuro próximo.”
Na hora de efetuarem uma compra, os fãs desse sofisticado universo mecânico costumam agir por impulso mais do que a média dos motoristas. Em muitos casos, isso significa não se importar em pagar um preço alto para realizar suas vontades. “Trata-se de uma questão de puro prazer pessoal, tanto que os donos raramente usam os carros no dia a dia”, afirma Ivan Fonseca e Silva, da Aston Martin. “Eles utilizam os modelos em ocasiões especiais e os tratam como personal toys.” Os tais brinquedos pessoais a que o executivo se refere no termo em inglês costumam ser vistos das 5 às 8 da manhã de sábado em locais como as marginais e as estradas nos arredores da cidade, quando o trânsito é mais livre.
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“São pessoas apaixonadas por velocidade e adrenalina”, define Mauricio Ikeda, gerente da Platinuss, no Jardim Europa, que importa oficialmente os Pagani e os Spyker. “Esse tipo de carro proporciona uma experiência, é muito mais do que simplesmente se locomover num veículo.” A turma da ostentação prefere desfilar com suas máquinas no fim de semana por ruas badaladas como a Oscar Freire, calculando milimetricamente o avanço para não “machucar” as rodas nas valetas dos cruzamentos. Vários restaurantes de bairros nobres costumam reservar vagas nas portas para esses bólidos.
Em geral, os aficionados dessas máquinas gostam de se agrupar em turmas, de acordo com as preferências de marca ou estilo de vida. Uma das comunidades mais atuantes é a dos antigomobilistas, como são conhecidos os malucos por automóveis clássicos. O administrador de empresas José Roberto da Rocha Azevedo, de 49 anos, pertence a esse time. Ainda criança, conta que foi picado pelo “vírus Mercedes” numa viagem ao Rio de Janeiro, em 1974. Na época, ficou fascinado ao ver num desfile no Iate Clube da capital fluminense um modelo 280 C e um 280 S.
“Eram carros muito à frente dos que havia por aqui, um tipo de coisa que só andava nas mãos de pessoas muito poderosas”, lembra. Hoje, ele é proprietário de quatro modelos da montadora alemã, quase todos eles bem antigos, como uma 250SE 1966. A paixão o levou a fundar, em 2004, o Mercedes-Benz Clube, que promove reuniões e funciona como um fórum para troca de informações entre os proprietários. “A cidade tem um bom número de mecânicos de confiança, e a disponibilidade de peças até pela internet não deixa ninguém na mão”, afirma Azevedo. Mais de 300 associados fazem parte atualmente da entidade.
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Vários iniciados nos prazeres da velocidade se reúnem em eventos fechados em autódromos. A empresa Driver Experience, que está entre as promotoras desse circuito, dispara convites a partir de um mailing com 4.000 clientes no país, dos quais 70% são motoristas paulistanos. Em média, ocorre um encontro do tipo por mês. O grosso dos participantes são pessoas que gostam de fazer as vezes de piloto amador (naturalmente, cada um deles possui a própria máquina). “Queremos que os clientes se divirtam num ambiente seguro, em vez de se arriscar nas rodovias”, conta o organizador, Décio Rodrigues Júnior. Pagam-se, aproximadamente, 1.000 reais pela taxa de inscrição. Cada edição atrai entre 80 e 100 corredores. Eles disputam provas de regularidade e rachas de velocidade em retas, como na pista de 5 quilômetros do aeroporto da Embraer, perto da cidade de Araraquara, no interior.
Alguns proprietários preferem organizar as próprias expedições, um hábito muito comum entre os fãs dos modelos mais incrementados de veículos off-road. Morando no Brasil desde a infância, o empresário espanhol Manolo Fuertes tem várias grandes viagens no currículo. Em 2008, por exemplo, conferiu boa parte da América do Sul num Land Rover Discovery 3. Foram 19.600 quilômetros em 26 dias de jornada, atravessando longos trechos em pisos irregulares, como os terrenos forrados de pedra e terra vulcânica no Chile e na Argentina.
Desde essa aventura, tornou-se cliente fiel da marca. Seu Discovery 4, versão 2011, é o terceiro veículo do tipo comprado por ele. “Gosto da robustez do modelo, da força do motor e dos sete lugares disponíveis em seu interior”, afirma. Como anda bastante com o carro pelo interior de São Paulo e de outros estados, Fuertes roda uma média de 6.500 quilômetros por mês com o 4×4. Quando está guiando na capital, lamenta não poder usufruir os 375 cavalos do motor V8 do jipe nos congestionamentos. “Mas gosto do respeito que o porte da máquina inspira no trânsito”, diz ele.
A mutliplicação de importados produziu um efeito colateral, na forma de envolvimento de vários motoristas em acidentes graves. Um dos casos de maior repercussão neste ano ocorreu em 8 de julho, na madrugada de um sábado, quando um Porsche 911 Turbo andando acima de 100 quilômetros por hora num trecho do bairro do Itaim acertou o Hyundai Tucson da advogada Carolina Menezes Cintra Santos. Ela havia furado o farol vermelho no cruzamento e, conforme um laudo posterior apontou, tinha bebido além do limite permitido. Morreu na hora. O outro envolvido no desastre, o empresário Marcelo Malvio Alves de Lima, escapou ileso. Depois de ser preso, pagou fiança de 300.000 reais e responde atualmente em liberdade a um processo por homicídio doloso (quando há a intenção de matar).
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“Carros muito possantes não foram feitos para qualquer um”, afirma o ex-piloto Ingo Hoffmann. “Às vezes, em menos de dez segundos, o motorista já atinge uma velocidade perto de 100 quilômetros por hora. São poucas as pessoas preparadas para ter reflexos tão rápidos no caso de emergências.” O especialista destaca ainda a falta de conhecimento de muitos proprietários em relação ao material que têm em mãos. A desinformação pode chegar ao ponto de o dono decidir blindar um esportivo. “O peso adicional afeta a suspensão, os freios e, em alguns casos, o câmbio”, explica Hoffmann.
Por causa da turma de exibicionistas, muitos recebem olhares enviesados nas ruas. “Já chegaram ao cúmulo de cuspir no meu carro”, afirma o empresário Leonardo Castilho, de 28 anos, fã dos modelos da marca alemã BMW. Ele dirige por aqui um M6 2009, avaliado em cerca de 700.000 reais. Como vai ao trabalho a pé, usa o automóvel mais em viagens de fins de semana. Depois de integrar clubes de adoradores de BMW, hoje prefere participar de provas de velocidade em autódromos e pistas de aviação. Segundo ele, contou no momento da decisão de compra a paixão por esportivos, não o desejo de se mostrar. “Muita gente batalha para realizar seus sonhos, mas no nosso país parece que quem possui esses veículos fez alguma coisa errada”.
Quando os restaurantes viram vitrines dos automóveis
A cena é comum em vários endereços do circuito da alta gastronomia paulistana. Quando os estabelecimentos possuem vagas na porta, em geral, elas acabam sendo ocupadas por carrões importados. Na hora do almoço do último dia 25, por exemplo, uma frota em frente à Figueira Rubaiyat, no Jardim Paulista, reunia um Porsche Cayenne e dois Land Rover. Outro point sofisticado, o Parigi, no Itaim Bibi, exibia também um Porsche, só que modelo Panamera, ao lado de um Range Rover. Os manobristas que trabalham nesses locais já não se impressionam tanto com essas máquinas. O paraibano João Batista da Silva, de 53 anos, é um dos mais experientes no ramo, com quase três décadas de atividade. “Somos orientados a mimar os clientes e guiar com todo cuidado”, afirma ele, do alto de sua experiência em lidar com bólidos como Ferrari e Maserati. “Não tem segredo, é só acelerar mais um pouco para eles andarem.”
Entre 2001 e 2004, ele trabalhou na Figueira Rubaiyat, quando teve a oportunidade de receber personalidades como Pelé e Bill Clinton. Atualmente, é o chefe da recepção de veículos do Baby Beef Rubaiyat, na Alameda Santos. Nos fins de semana, cada manobrista chega a atender cerca de trinta carros por turno. Momento inesquecível? A imagem dos dois Rolls-Royce que dirigiu há alguns anos é que nunca sai de sua cabeça. “Eu me senti nas nuvens”, lembra.
AS CAMPEÃS DA CAPITAL
Algumas das marcas de luxo preferidas dos motoristas da cidade*
BMW: 2.637
Mercedes: 1.904
Land Rover: 1.247
Audi: 770
Porsche: 411
Jaguar: 48
Ferrari: 26
Lamborghini: 16
* Veículos emplacados em São Paulo