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Voltar para casa

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 14h19 - Publicado em 4 jul 2014, 23h00

E vem Helena, poderosa nos seus quase 6 anos, trazendo a mãe a reboque. Que são as mães em viagem de filhos senão o reboque onde os miúdos amontoam as malas, bonecas, cordeiro de pelúcia, casaco, jogos, comestíveis, segurança, responsabilidade, histórias… Eis o mistério da criança: frágil dominante, dependente imperiosa, subalterna insubmissa. Que traz Helena, além da mãe indispensável, a mais preciosa das suas posses?

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Traz a urgência de ver todos, de encaixá-los novamente em seus nichos afetivos, classificá-los por prioridades, que variam conforme o momento e a utilidade. Traz posses importantes, como certas roupas e brinquedos preferidos, objetos únicos a que as crianças se apegam como propriedade inviolável, um bem só seu, inegociável. Na verdade é a segunda experiência de posse, porque a primeira, o seio materno, foi cedo desapropriada— não sem revolta, protestos e manifestações, que lhe valeram compensações. Precoce aprendizagem.

E vem Helena, rever sua segunda pátria. Dos seus quase 6 anos, viveu quatro no Brasil, menos de dois nos Estados Unidos, onde nasceu e mora hoje. Tão pequena e já tem duas pátrias, que ao longo da vida deverá amar, entender, explicar, justificar, criticar, defender, e em uma delas fincar sua identidade. Dá trabalho ter uma pátria, que dirá duas. Terá de construir no cérebro inexperiente duas sintaxes ,duas gramáticas, duas semânticas, duas psiques. Dá trabalho assimilar uma língua, que dirá duas.

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Teve de lidar com a saudade, fruto da distância, coisa também difícil de entender para uma cabecinha que vê as distâncias como coisas menos complicadas do que quilômetros, fronteiras e oceanos, e no dia a dia se resumem ao tempo de chegar à escola ou ao supermercado; cabecinha que entende o longe como o sítio do avô (“mãe, falta muito?”), quando em São Paulo, ou uma praia no golfo, quando na Flórida. Lidar com a carência de primos, avós, tios, calor dos abraços, festas ruidosas ,tudo situado a uma distância incompreensível, quenturas brasileiras transferidas para daí a meses — por quê? Por quê?

Ah, avida é assim, e se aprende com lágrimas. Helena vive num lugar em ordem, onde o medo dos pais é de um furacão que pode vir algum dia, quem sabe; medo quen ão chega aos filhos porque não nasce da ameaça diária e incerta de um assalto, de uma bala perdida, de uma turba, de uma surpresa na esquina, como aqui. O furacão é conhecido, recebe nome de gente e marca hora para chegar. Agora, acostumada com a ordem, Helena provavelmente não entenderá o que se passa quando vir, olhos assustados, as imagens na televisão: ônibus em chamas, turba gritando, vitrines espatifando-se com pedradas e chutes, policiais atirando bombas, aparando pedras nos escudos, torcedores de futebol esmurrando-se e chutando, danças sensuais no horário familiar, miseráveis drogados vivendos ob os viadutos.

Talvez interprete tudo isso como um filme estúpido para adultos, não a realidade. Dentro de um mês, terá de aprender as sutilezas de sentido da expressão “voltar para casa”. Quando estava lá, na plana e ensolarada Flórida, voltar para casa era para o Brasil, onde tem parentes, onde aprendeu o bê-á-bá do português, onde os primos que aqui zoneiam não zoneiam como lá. Quando estiver aqui, no sobe e desce colinas do brumoso inverno paulistano, voltar para casa será para a Flórida, onde tem sua nova e gostosa morada, seu quarto, suas coisas, seu trabalhoso novo idioma, e onde moram a princesa Ariel e a Branca de Neve.

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Ivan Angelo: ivan@abril.com.br

 

 

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