Ruth Tarasantchi garimpa peças para o acervo do Museu Judaico
Historiadora é responsável pelo acervo da instituição localizada no centro, com previsão de abertura em 2016
A historiadora Ruth Tarasantchi manuseia cuidadosamente uma pequena boneca, com as pernas molengas e o rosto quebrado, remendado com um pedaço de chiclete. Ainda criança, ganhou a peça de sua mãe, quase como um prêmio de consolação, quando estava prestes a enfrentar um período turbulento. Judia, acabara de fugir de seu país de origem, a antiga Iugoslávia, por causa da II Guerra Mundial, deixando para trás uma rotina confortável. Foi parar na Itália, onde acabou confinada, primeiramente em um vilarejo e depois em um campo de concentração chamado Ferramonti. Após ser libertada por oficiais ingleses, em 1943, transitou ainda por alguns anos entre a Sicília e Roma.
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Em 1947, com 13 anos, ao desembarcar em São Paulo, cidade onde seu pai, médico, resolvera montar nova vida e abrir um laboratório de produtos químicos, a menina ainda levava consigo o brinquedo. Hoje, aos 81 anos, continua guardando esse tesouro de infância. Para ela, a memória de uma família é coisa seriíssima. Tanto que dedicou a vida a preservar as lembranças não só de sua trajetória marcada por reviravoltas como da de outras pessoas.
A boneca (com suas roupinhas costuradas a mão) faz parte do acervo de mais de 2 500 itens do Museu Judaico, no centro, com inauguração prevista para o segundo semestre do próximo ano. Há uma década, Ruth é responsável por garimpar as relíquias com o intuito de contar e preservar a história da comunidade judaica mundial e, principalmente, paulistana. “O que importa nem sempre é o objeto em si, mas as recordações que carrega”, acredita.
Com orçamento estimado em 27 milhões de reais, o centro de exposição de quatro andares, que será o principal do gênero no país, já tem boa parte de sua estrutura erguida. Na esteira da construção, a sinagoga anexa, batizada de Templo Beth-el e fundada em 1928, foi totalmente restaurada. Casamentos, celebrações de bar-mitzvá (ritual de passagem de um garoto à fase adulta) e brit milá (cerimônia de circuncisão) de famílias poderosas aconteceram ali. A Associação dos Amigos do Museu Judaico no Estado de São Paulo (AMJSP) ainda está em busca de recursos para finalizar o projeto.
Na terça (18), promoveu um jantar na Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, no Jardim Europa, a fim de arrecadar fundos. O evento contou com a presença do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-ministro Celso Lafer, do conselho da entidade, composto também de gente como o político Alberto Goldman, o oftalmologista Claudio Luiz Lottenberg e o empresário Daniel Feffer. “Queremos auxílio também fora da comunidade judaica; afinal, trata-se de uma causa de todos”, explica Sergio Simon, presidente do museu e oncologista do Hospital Albert Einstein.
Nem só os oferecimentos financeiros são bem-vindos. Doações de objetos significativos também importam (e muito). É aí que entra o trabalho dedicado de dona Ruth. Cheia de energia, ela reuniu fotos, documentos, roupas, livros de reza, quadros, objetos para as festas sagradas e muitos outros itens. Há artefatos de diversos países, principalmente da Alemanha, da Polônia e da Turquia, e de várias épocas (alguns remontam ao século XVI). Por indicação, ela vai à casa de membros da comunidade em busca dos tesouros, em média, uma vez por semana. Passa tardes ouvindo histórias e observando tudo com olhar atento. “Muitas vezes, as pessoas possuem coisas incríveis e nem sabem, ou mesmo não têm interesse em guarda-las”, afirma. “Aí, logo vou dizendo: ‘Eu quero!’.”
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Ruth já chegou a encontrar álbuns de retratos e outros artigos expressivos no lixo. Ela cruza pelo caminho com muitos desavisados. Uma família lhe ofereceu uma vasilha enfeitada, pois a achava bonita. Ao catalogar a louça, Ruth viu que apareciam pequenas suásticas em meio às flores estampadas. Ninguém nunca havia percebido tal afronta à mesa de jantar. Existem ainda pessoas que pensam guardar relíquias importantes, mas elas têm, na verdade, pouco valor. Nesse caso, Ruth arma seu sorriso largo e declina gentilmente as doações, explicando isso com seu leve porém persistente sotaque. Até porque o espaço se mostra limitado. Os artefatos ficam armazenados, por enquanto, em um escritório nos Jardins.
Com uma memória invejável, Ruth é capaz de lembrar detalhes de muitas das coisas amealhadas em uma década de trabalho. Em fevereiro, morreu, aos 92 anos, o ativista comunitário judaico Fiszel Czeresnia. Nascido na Polônia, ele chegou a São Paulo em 1934, com 11 anos. Coube à historiadora avaliar as dezenas de preciosidades doadas ao novo museu pelos descendentes, entre elas há uma coleção de dez gravuras do renomado pintor israelense Reuven Rubin. “Estamos considerando dar mais coisas, mas existem alguns itens de muito valor afetivo, seria difícil nos desfazermos deles”, diz Tamara, uma das filhas de Czeresnia.
Na relação de doadores constam vários clãs tradicionais dessa comunidade religiosa na capital. Fundador da empresa Tecnisa, do mercado imobiliário, Meyer Nigri cedeu uma das peças mais nobres do acervo — uma Torá, ou melhor, meia Torá, o livro sagrado dos judeus. Ela está incompleta, e Ruth ainda busca um texto integral. Vindo do Marrocos e datado de aproximadamente 1870, o artefato de 12 metros de comprimento é feito de couro e escrito a mão. Um amigo de Nigri o encontrou para venda em um antiquário em Barcelona.
Em breve, o acervo de Ruth deve receber contribuições da família de Samuel Klein (19232014), fundador das Casas Bahia. “Estamos avaliando quais objetos poderemos ceder”, conta Natalie Klein, empresária e neta de Samuel. “Meu avô foi perseguido pelos nazistas e passou por dois campos de concentração. Quando veio para o Brasil, tinha poucas coisas. Então o grande exemplo é a inspiradora história dele.” A maioria dos objetos que chegam a dona Ruth, entretanto, vem de sobrenomes menos conhecidos da sociedade.
Outro destaque da miscelânea é um diário com relatos de perseguição escritos pela alemã Lori Dublon, aos 14 anos. A menina vivia na Bélgica e foi levada a Auschwitz, a mais conhecida rede de campos de concentração da época da II Guerra. Em seu caderno, Lori guardava bilhetes dos filmes a que havia assistido no cinema e falava de coisas comuns de seu dia a dia, incluindo as paqueras de adolescência. A história se assemelha muito à de Anne Frank, a célebre judia que deixou registrado em seu diário os anos em que ela e sua família viveram em cômodos escondidos dentro de um prédio comercial em Amsterdã, na Holanda. Curiosamente, os cadernos usados por Lori e Anne Frank são do mesmo modelo. Logo após a chegada dos nazistas à Bélgica, um tio de Lori voltou para tentar salvar a família Dublon, mas todos já haviam sido presos. Encontrou o livro, que passou para seu sobrinho e que veio parar agora na coleção do museu paulistano.
O antissemitismo era um sentimento presente na São Paulo da primeira metade do século XX, conforme mostra um conjunto de cartas reunido para o museu da capital. As missivas contêm ameaças a Mauricio Blaustein, um judeu morador da Alameda Itu. Ele escreveu um texto a favor da comunidade em um jornal da cidade e passou a receber notas intimidativas. Em um dos documentos, de 1945, lê-se o seguinte: “Os pró-názis prometem a ti morte a tiro”. Em outro trecho dele, mais uma ameaça pesada: “Se morreram 6 milhões, morre mais um judeu”.
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Quando algo produzido em papel chega em mau estado ao acervo, Ruth restaura o item em uma oficina improvisada em seu apartamento, no Paraíso. Após passagem pelo Colégio de Santa Inês e Bandeirantes, ela cursou por três anos uma faculdade de medicina, época em que conheceu seu marido, o médico romeno Jacob Tarasantchi, falecido há dezoito anos, com quem teve dois filhos. Acabou desistindo da formação em saúde e enveredou pelo campo da arte. Assim, aprendeu as técnicas de restauro. Formou-se na Escola de Belas Artes e tem mestrado e doutorado em história da arte pela USP. Especializou-se na pintura paulista do século XIX, assunto que lhe rendeu a autoria de diversos livros sobre o assunto.
As paredes de sua casa são repletas de obras de pintores, a exemplo de Pedro Alexandrino. Entre outras atividades, já fez parte do conselho da Pinacoteca. Ela mesma virou artista: produz gravuras, muitas com lembranças de sua infância e juventude. Em uma das peças, retrata o roubo de um repolho. Na época do campo de concentração, comia pouco e mal. Ao ouvir a mãe reclamar da saudade de saborear verduras frescas, esgueirou-se até a plantação de repolho dos chineses capturados de uma embarcação, que dividiam espaço com os judeus, e furtou o alimento. Trouxe-o para o barraco onde viviam também seu pai e sua irmã, mas demorou pouco para que um dos donos da comida batesse à porta a fim de reclamar do rapto.
A despeito das privações e dos problemas, todos os integrantes da família sobreviveram à prisão. Havia na época lugares muito piores para os judeus, mas isso não significa que a experiência não tenha deixado marcas. “Minha mãe, que morreu em 1999, bloqueou essas memórias”, conta Ruth. O Museu Judaico de São Paulo contará com um setor dedicado ao Holocausto. “Há bastante coisa para ser contada sobre como viveram e vivem os judeus, e não apenas sobre como morreram”, diz Fernando Lottenberg, presidente da Confederação Israeli ta do Brasil (Conib). Com um misto de estrutura tradicional, representada pela sinagoga de Samuel Roder, e uma nova área, com vista para a Avenida 9 de Julho, pensada pelo escritório Botti Rubin Arquitetos, o local segue o modelo de outros espaços do gênero ao redor do mundo, como o de Nova York, instalado na mansão de um filantropo judeu. Os visitantes aproveitarão ainda um café, uma loja de suvenires e uma biblioteca.
A reunião de memórias ajuda a contar a história desse povo que emigrou mais fortemente para São Paulo nos anos 1910. O intenso crescimento urbano e econômico da cidade atraiu imigrantes, em sua maior parte, da Europa Oriental e, mais tarde, de países como Líbano e Síria. Com a eclosão da II Guerra Mundial, o fluxo de estrangeiros se intensificou. Nos anos 40, havia cerca de 20 000 judeus por aqui. A porta de entrada era o Porto de Santos, de onde eles partiam de trem para o Brás. Depois, instalavam-se principalmente no Bom Retiro e na Mooca. Os trabalhos mais comuns eram de mascate, comerciante e pequeno industrial. Muitos daqueles que prosperaram se mudaram, nas décadas seguintes, para Higienópolis, antigo reduto dos barões do café. O local se tornou um bairro emergente e ganhou sinagogas e comércios kosher. O grupo deixou marcas importantes, a exemplo do Hospital Israelita Albert Einstein e do clube A Hebraica.
Hoje, calcula-se que haja cerca de 120 000 judeus no Brasil, e metade deles mora na cidade. A trajetória de dona Ruth é similar à dos milhares de pessoas da mesma religião que desembarcaram no passado na capital. Em 2013 e 2014, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e o Memorial da América Latina receberam uma exposição sobre sua vida. A mostra passou depois pela Itália. A historiadora está escrevendo suas memórias, ainda sem previsão de término. “Quero que meus filhos, netos e outras pessoas saibam pelo que eu passei”, afirma. “Essa história não é só minha.” A especialista doou mais de 100 peças pessoais ao acervo do novo museu. Mas até agora não conseguiu se desfazer de um item: uma mala de vime marrom, usada para fugir da Iugoslávia. Dentro dela, além de algumas roupas, carregava a boneca que havia ganhado de presente da mãe.
*Com reportagem de Sophia Braun