Cidades

A má distribuição do verde

por Guilherme Queiroz, Raul Juste Lores Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 ago 2021, 09h26 - Publicado em
7 ago 2020
01h58

Na foto: à esquerda, Ibirapuera e à direita, Paraisópolis: abismo na cobertura vegetal Marcelo Sonohara/VejaSP

 


Levantamento exclusivo mostra diferenças da cobertura vegetal na capital: bairros pouco habitados contam com muitas árvores e os populosos sofrem sem verde

A

celeuma com a reforma do Anhangabaú revelou um sincero desejo dos paulistanos de mais áreas verdes à mão. Mas também desconhecimento: trata-se de uma laje de concreto, com dois túneis de trânsito pesado embaixo (e não um rio, como há 120 anos, em terra fértil). Muitos que compartilharam as fotos do antes e do depois jamais frequentaram o espaço “quando era mais verde”.

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A metros do árido Vale, os arborizados Praça da República e Parque Dom Pedro são meros lugares de passagem, com bancos vazios. A paixão do paulistano pelo verde não é muito convincente. O sucesso instantâneo da Paulista Aberta aos domingos contrasta com o silêncio quando o então prefeito Figueiredo Ferraz removeu os 120 ipês-amarelos da icônica avenida, em 1972, para criar mais pistas para carros (o que foi elogiado na ocasião).

Desde 1954, quando foi aberto, o Ibirapuera foi retalhado, com terrenos sendo ocupados pelo clube do Círculo Militar, pela Assembleia e até para o centro acadêmico da Faculdade de Direito da USP, diante da passividade popular. O metrô nunca chegou ali, mas o parque foi isolado por vias expressas. É um parque ainda pensado para o automóvel.

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PARQUE DO IBIRAPUERA

Área: 1 241 857 m². Proibição de qualquer construção acima de 10 metros em quase todo o seu perímetro. 6 000 moradores nas oitenta quadras lindeiras. Densidade de 1 700 habitantes/km².

PARAISÓPOLIS

Densidade: 45 000 habitantes/km². População:
100 000. Uma única praça sem árvores, primeiro parque só em dezembro.

* dados da prefeitura de São Paulo, Urbit e IBGE

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O centenário Jardim Botânico, três vezes maior que o Parque do Povo, não chega a 500 visitantes por dia — menos que recebe muita academia de musculação da cidade.

Levantamento inédito realizado pela Vejinha e pela consultoria Urbit mostra o porquê da sensação de que a capital é ainda menos verde do que já se revela a olho nu. Algumas das áreas mais arborizadas da cidade são as mais desabitadas; já em bairros e distritos muito populosos, até as praças são raras.

Uma das regiões menos habitadas da cidade, o Alto de Pinheiros ganhou praças e parques nas últimas três décadas; legislação impede mais moradores e uso comercial na maior parte do bairro
Uma das regiões menos habitadas da cidade, o Alto de Pinheiros ganhou praças e parques nas últimas três décadas; legislação impede mais moradores e uso comercial na maior parte do bairro (Uelson Henkell/Veja SP)

No Alto de Pinheiros, onde moram 43 000 paulistanos, existem dois parques e 53 praças. É mais do que têm Campo Limpo, Capão Redondo e Vila Andrade somados, onde vivem 607 000 pessoas. No populoso Sacomã, com 250 000 habitantes (onde fica a favela de Heliópolis, a segunda maior da cidade), não existe um único parque. A Zona Leste e o Centro lideram em áreas com baixo índice de arborização.

Outra constatação é que justamente os bairros mais bem servidos de verde, de menor densidade populacional, criaram muralhas legais para evitar que mais paulistanos desfrutem essa sombra. Na Avenida Quarto Centenário, lindante com o Ibirapuera, o zoneamento só permite construções residenciais com até 10 metros de altura (menores do que um predinho de três andares). Nem comércio. O limite é o mesmo na Avenida Fonseca Rodrigues, colada ao Villa-Lobos.

No Ipiranga, a Avenida Dom Pedro, que dá no Parque da Independência, tem diversos imóveis vazios, mas o tombamento do Museu do Ipiranga impede que se ergam prédios a 1 quilômetro dali. “Foi feito um estudo mantendo a ambiência e preocupado com esse eixo visual. As quadras mais próximas ao Museu Paulista têm um gabarito mais baixo, pois prédios iriam tirar o equilíbrio da cidade”, diz Marco Winther, do Departamento do Patrimônio Histórico da prefeitura.

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(Marcelo Sonohara/Veja SP)

São Paulo tem uma política que é a antítese da de Nova York. Desde sua abertura, em 1876, o Central Park se tornou um ímã para edifícios. O Dakota, construído em 1880, foi dos pioneiros a convencer a elite a trocar os palacetes da época por apartamentos com vista para o parque.

Hoje, 550 000 nova-iorquinos moram a 10 minutos a pé do parque central, que é acessível a 2 milhões de moradores em menos de meia hora de metrô (nas oitenta quadras ao redor do Ibirapuera, moram 6.000 pessoas, segundo os geodados da Urbit). Em média, os edifícios ao redor do Central Park têm permissão para construir catorze vezes o tamanho do terreno que ocupam (como nos casos do The Plaza Hotel, do Majestic e do San Remo).

Números são de 2019
Números são de 2019 (Marcelo Cutti/Veja SP)

Só no San Remo, com 160 apartamentos, há mais unidades que em quase todos os espigões “um por andar” no curto trecho onde prédios com vista para o Ibirapuera são permitidos, no Paraíso. Para o lado do Jardim Lusitânia, a legislação permite apenas edificar uma única vez. Um terreno de 500 metros quadrados pode abrigar no máximo o mesmo número de metros de área construída (a medida nova- iorquina é catorze vezes maior).

“Tombamento não deveria reduzir o número de pessoas ao redor do parque, o que acaba promovendo a elitização do entorno, com muita demanda e pouca oferta”, diz o advogado Marcelo Manhães, que é membro do Conselho Estadual de Preservação Histórica, o Condephaat. “Na Aclimação, o tombamento veio só depois do anúncio de um prédio de doze andares a 180 metros do parque. Apenas para evitar mais gente ali.”

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(Guilherme Queiroz/Veja SP)

Em São Paulo, há raros casos que lembram o modelo nova-iorquino. Um deles é o Parque Buenos Aires, em Higienópolis, quase todo cercado por prédios com dezesseis andares em média. Como ao redor do Parque do Povo, no Itaim.

Em um círculo vicioso, o modesto número de vizinhos e o uso estritamente residencial fazem com que muitos parques e praças vivam vazios. Mesmo nos dias ensolarados, há poucas pessoas à sombra da Praça Cedro do Líbano, em plena Avenida Brasil, da Praça das Guianas ou da Homero Silva, em Perdizes, na Zona Oeste.

Buenos Aires, em Higienópolis: raro espaço verde cercado de prédios e em um distrito populoso, com uso dia e noite
Buenos Aires, em Higienópolis: raro espaço verde cercado de prédios e em um distrito populoso, com uso dia e noite (Marceno Sonohara/Divulgação)

Os 2 100 metros quadrados da BarryParker, no Pacaembu, têm escassos frequentadores. A praça é batizada com o nome do arquiteto que idealizou os bairros-jardins — uma praça sempre vazia com seu nome é justificável.

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MUITO VERDE, POUCA GENTE

ALTO DE PINHEIROS. População: 43 117. Densidade: 5 600 habitantes/km². Área total de parques: 852 000 m²

BUTANTÃ. População: 54 196. Densidade: 4 336 habitantes/km². Área total de parques: 119 031 m²

IPIRANGA. População: 106 865. Densidade: 10 178 habitantes/km². Área total de parques: 152 133 m².

* dados da prefeitura e do governo do Estado de São Paulo

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Em 1961, a influente urbanista americana Jane Jacobs descreveu algumas das necessidades de praças e parques urbanos. “A variedade de usos dos edifícios ao redor propicia aos parques usuários diversos, que neles entram e saem em horários diferentes, e os deixam mais seguros”, escreveu. “Um parque não pode depender apenas da frequência de mães ou de funcionários de escritórios ou de estudantes. Na cidade, vida e variedade atraem mais vida; monotonia e vácuo espantam vida.”

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(Alexandre Battibugli/Veja SP)

São Paulo foi vagarosa em reservar áreas verdes. Até 100 anos atrás, a cidade só tinha quatro parques: Luz, Horto Florestal, Trianon e o Buenos Aires (ainda chamado praça). Mesmo durante o crescimento populacional vertiginoso entre 1920 e 1960, a expansão foi tímida, com os novos Água Branca, Aclimação e Ibirapuera. As maiores expansões se deram nos anos 1970, com parques mais distantes do Centro (Guarapiranga, Carmo, Serra do Mar), e entre 2005 e 2012, quando 66 dos 108 parques municipais foram criados, durante a gestão do então secretário do Verde, Eduardo Jorge (governos Serra e Kassab).

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“Procuramos áreas que já eram públicas, áreas de credores que deviam para a prefeitura, como o Parque do Trote, da Vila Guilherme. E também fizemos muitas desapropriações, de chácaras no Lajeado e no Itaim Paulista ao entorno de córregos e rios— dezoito dos 66 parques são lineares. ”Houve recursos — a pasta do Verde ficou com 1% do orçamento nos oito anos de gestão (era 0,35% em 2004). Ainda assim, críticos dizem que vários foram criados sem equipe suficiente.

Já na gestão Haddad (2013-2016), a secretaria voltou a encolher. O orçamento regrediu a 0,32%, e cinco titulares ocuparam o cargo em quatro anos. Oito parques foram inaugurados. A gestão Doria/Covas manteve o pedaço do bolo magrinho, com 0,37%. “As gestões Haddad e Doria/Covas não têm apreço pelos parques, os veem como estorvo”, espeta o vereador Gilberto Natalini (PV), que, ironicamente, foi secretário do Verde de Doria por apenas sete meses. A gestão Doria/Covas só entregou três parques até agora, mas promete sete novos até o fim do ano.

Foto

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POUCO VERDE, MUITA GENTE

SACOMÃ. População: 247 851. Densidade: 17 454 habitantes/km². Área total de parques: 0 m².

CAMPO LIMPO. População: 211 361. Densidade: 16 513 habitantes/km². Área total de parques: 16 730 m².

CIDADE ADEMAR. População: 266 681. Densidade: 22 223 habitantes/km². Área total de parques: 0 m².

* dados da prefeitura e do governo do Estado de São Paulo

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Cobertura arbórea por hectare
Cobertura arbórea por hectare (Urbit/Veja SP)

Se a longa quarentena (para alguns) criou massa crítica suficiente para engrossar a demanda por mais espaços verdes, é bom conhecer as propostas que fizeram de São Paulo um pouco mais verde na última década.

A incorporadora Porte, que construiu diversos arranha-céus residenciais no Jardim Anália Franco, ofereceu à prefeitura substituir o alto muro que cercava o parque Ceret, na Zona Leste, por gradil. A gestão Haddad topou a troca do entorno antes inseguro e a visitação do parque (maior que o da Aclimação e o do Povo juntos) triplicou.

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(Porte/Veja SP/Divulgação)

Antes, outro caso de participação privada foi a do Parque do Povo, no Itaim. Ocupado durante vinte anos por clubes de várzea que exploravam comercialmente (e ilegalmente) o terreno da Caixa Econômica e do INSS, o local passou para a prefeitura e foi aberto em 2008.

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Na última década, tem sua manutenção bancada por empresas vizinhas, em uma associação sem fins lucrativos. Parcerias assim ainda são raras (o Volpi é mantido pela Rede D’Or e o Burle Marx, pela Fundação Birmann).

Quem conhece a máquina pública também tem sugestões. Depois de 25 anos na Secretaria Municipal do Verde, Domingos Leoncio Pereira sugere que a administração dos parques seja feita por concurso, com continuidade. “Cada nova eleição, troca a gestão porque o candidato X quer um cabo eleitoral lá”, constata. Ele diz que não há uma fórmula para criar novos parques. “Tem os que nasceram do zero, em aterros, como o Villa-Lobos e o LydiaDiogo, o Cidade de Toronto, em Pirituba, era um brejo, que foi represado”, compara. “Muitos nascem como compensação de um empreendimento imobiliário. Mas, às vezes, cedem a pior parte da gleba, um barranco.”

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(Maurício Vilela @soudroneiro/Veja SP)

A geógrafa Stela Goldenstein também sugere mudanças na legislação de áreas permeáveis. “A norma parece ecoar uma época em que as casas tinham quintais. Hoje cada prédio acaba tendo um pequeno gramado na frente, atrás de grades, frequentemente sobre laje e sem uso. Seria bem mais interessante somar esses espaços com pouco uso para formar praças de fato, com massas verdes significativas”, diz. “Nos loteamentos, a experiência mostra que os piores espaços eram destinados ao uso comum.

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E, com frequência, não têm uso efetivo”, afirma ela. No ano passado, o artista plástico Pazé Keffer fez uma exposição no CCBB sugerindo a transformação de quatro cemitérios paulistanos em parques, apenas mudando os túmulos de lugar. Para pensar.

Praças das Guianas e Cedro do Líbano, no Jardim América e no Jardim Paulista, respectivamente: pouco uso
Praças das Guianas e Cedro do Líbano, no Jardim América e no Jardim Paulista, respectivamente: pouco uso (Raul Juste Lores/Veja SP)

A maior mudança, porém, seria ceder um pouco, como sugere o vereador José Police Neto. “Moradores impedem prédios em um corredor pesado de trânsito como a Rua Estados Unidos para não atrapalhar suas vistas, com ruas verdes vazias por perto. Já a elite cultural quer parque, mas não moradia popular, que deveria existir no terreno do Silvio Santos no Bixiga, já com infraestrutura. Não é fácil combinar densidade populacional e verde na cidade”, provoca. Bom momento para refletir.

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(Orbon Alija /Getty Images/Veja SP)
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Central Park representa uma das maiores fontes de arrecadação da prefeitura de Nova York. Só de equivalente ao IPTU, são 900 milhões de dólares anuais na vizinhança imediata. Outros 500 milhões são com gastos no parque, comércio; e mais 200 milhões em eventos e permissão para locação de filmes, séries e publicidade. 37% dos quartos de hotel de Nova York ficam a menos de um quilômetro do parque, o que confirma sua vocação de ímã. Pouco menor que a Cidade Universitária da USP, mas com o dobro do tamanho do Ibirapuera, ele também sofreu com a decadência nova-iorquina nos anos 70 e 80. Em 1973, quando sofria com sujeira, violência e parca manutenção municipal, recebeu apenas 12 milhões de visitantes, pouco mais que o Ibirapuera em tempos normais.

Um grupo de vizinhos, liderado por George Soros, bancou um estudo, em 1974, para recuperar o parque, o que levou à criação de uma ONG que até hoje é responsável pela gestão e por pagar 75% da manutenção. Há 42.000 sócios-contribuintes. Ao contrário do Ibirapuera, que recebe doze vezes mais visitantes no fim de semana que em dias úteis, o parque de Manhattan tem uma visitação mais equilibrada —apenas 20% são turistas. Hoje, o famoso perímetro de quatro quilômetros de norte a sul, e de 800 metros de leste a oeste, recebe 40 milhões de pessoas por ano (mais que os 150 parques paulistanos juntos).

O sucesso da parceria público-privada levou a prefeitura de lá a permitir a construção de arranha-céus à beira–rio, no Brooklyn e no Queens, em troca da criação e manutenção de novos parques pelos próprios incorporadores. O leilão de terrenos e a permissão de construção de prédios já patrocinaram a criação de vários parques no East River. Antigas fábricas e armazéns portuários deram origem ao Brooklyn Bridge, ao Hunters Point South e ao Domino Park. Madri seguiu a mesma linha: escavou uma série de túneis para enterrar suas “marginais” e criar um parque de quinze quilômetros à beira-rio. A região é a mais disputada hoje para novas moradias na capital espanhola.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699. 

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