Projeto cultural espalha 160 retratos pelos muros do Bom Retiro
Financiadas por fotógrafo francês, as imagens são de moradores e frequentadores da região
Com apenas 8 dólares no bolso e algumas máquinas próprias para confeccionar bonés de pano, os pais de Hugueta Senacz chegaram ao Brasil, em 1929, fugidos da vida pobre na Polônia. Depois de desembarcarem no Porto de Santos, subiram no trem, saltaram na Estação da Luz e se dirigiram ao Bom Retiro. Nesse começo de vida na nova cidade, tiveram de alugar um quartinho na pensão de uma italiana. Isso fez com que o segundo idioma de Hugueta, então com 2 anos, fosse o da matrona. Precisaram também se virar para cozinhar em uma lata de banha com carvão, pois a casa não tinha cozinha. Para piorar, era março, e as chuvas de verão destruíram os equipamentos trazidos na viagem e o sonho da família de empreender por aqui.
Apesar do início desastroso, os Senacz arrumaram emprego e prosperaram no bairro, com a ajuda dos vizinhos judeus. Já adulta, Hugueta se casou com um polonês da comunidade, teve três filhos e montou uma confecção. O marido, além de administrar os negócios, escrevia poemas em iídiche, enquanto ela organizava as comemorações da Páscoa (Pessach) para a turma da redondeza. Nas últimas décadas, ela viu os açougues kosher e as sinagogas perder espaço com a chegada de outras levas de imigrantes, como a dos coreanos, que abriram por lá restaurantes e ocuparam boa parte das lojas. “Restaram poucas coisas por aqui da minha época de infância”, espanta-se Hugueta, que continua lúcida e bem ativa aos 87 anos de idade.
Personagens como a simpática anciã polonesa são retratados no projeto fotográfico organizado pelo Instituto Cultural Israelita Brasileiro, mais conhecido como a Casa do Povo, no Bom Retiro. Nos últimos meses, 160 moradores e frequentadores do bairro foram selecionados pela organização da mostra. “Falamos com líderes das mais diferentes comunidades que vivem no local e eles convidaram amigos e conhecidos para participar”, conta o francês Paulo Duboc, de 22 anos, um dos responsáveis pela iniciativa.
Depois de retratados pela câmera do argentino Pablo Saborido, os escolhidos tiveram sua imagem transformada em painéis de até 2,7 metros de altura confeccionados em um estúdio de Nova York, nos Estados Unidos, e embarcados para cá. Na semana passada, os trabalhos começaram a ser espalhados pelos muros da região. O resultado ficará exposto por um mês. A ideia faz parte do projeto Inside Out, do fotógrafo francês JR, que ficou conhecido ao encher as ruas do centro de Paris, na França, com imagens de jovens da periferia durante as manifestações de 2005. Agraciado com um prêmio de 100 000 dólares, ele passou a financiar pessoas pelo mundo com propostas semelhantes. A do Bom Retiro foi uma delas.
O acolhimento entre conterrâneos sempre caracterizou a imigração no bairro. “Historicamente, formaram-se redes. Os pioneiros recebiam e ajudavam financeiramente os recém-chegados e assim se formaram as comunidades”, explica Maria Izilda Matos, professora de história do Brasil da PUC-SP. A chegada dos orientais ao Bom Retiro é simbolizada na mostra por retratos de gente como Lisa Um, uma coreana de 54 anos que vive no pedaço há mais de três décadas. Sua família trabalhou em confecções de judeus até aprender o ofício e abrir seu próprio negócio. Atualmente, Lisa vende bolsas esportivas por 50 reais. Apesar do tempo no país, ainda fala português com dificuldade. Quando não está no trabalho, diverte-se disputando partidas de badminton com as amigas, cantando no karaokê no fim de semana e apreciando pratos típicos como o bulgo gui (um tipo de churrasco com legumes apimentados). “Tenho tudo de que preciso no Bom Retiro”, conta.
Entusiasta de sua cultura, leciona o idioma natal nos fins de semana e promove eventos com música e comidas tradicionais, quando circula com o traje de festa hanbok. Como boa coreana, frequenta a igreja para socializar e conhecer novos membros da comunidade. Ela torce para que seus dois filhos, de 21 e 22 anos, escolham alguém da mesma origem para se casar. “Eu ficaria muito feliz, mas é difícil, pois eles fazem faculdade aqui e acabam conhecendo muitas brasileiras.”
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Ao longo das últimas décadas, o bairro acolheu gente das mais diferentes procedências, como o descendente de libaneses Celso Curi, 63, atual diretor da Oficina Cultural Oswald de Andrade. “Estudei na Casa do Povo quando era criança, por isso dividia as brincadeiras entre meus primos muçulmanos e os colegas judeus”, conta. Praticamente uma celebridade local, o grego Thrassyvoulos Petrakis, 95, é dono desde o início da década de 70 do restaurante Acrópoles, onde começou a trabalhar como garçom dez anos antes.
O filho de japoneses Willian Takahiro, 31, é proprietário de um bar na Liberdade, mas desde os 6 anos de idade passa os fins de semana treinando sumô no Bom Retiro. Com 116 quilos, compete na categoria peso-pesado e virou um craque da modalidade. Seu currículo inclui dez títulos brasileiros e quatro sul-americanos. Filha de paraibanos mas nascida em São Paulo, Andreia Miranda, 36, trabalha em uma associação que representa as lojas do bairro. Os retratos ampliados e espalhados dessas pessoas representam uma forma diferente de contar as transformações que fizeram do bairro uma grande e curiosa miscelânea cultural e social.