Casa da Flip, Paraty encanta paulistanos com belezas naturais
Cidade se prepara para receber a Festa Literária, um entre os muitos bons motivos para visitar essa joia colonial bem servida de história e boa comida
Na próxima quarta (9), começa mais uma edição da Festa Literária Internacional de Paraty, um dos principais eventos do setor na América Latina. Durante os cinco dias de festival, cerca de 25 000 turistas ocuparão as centenárias ruas de pedras da cidade fluminense e as tendas para ouvir seus escritores favoritos, como a mineira Carla Madeira, autora dos best-sellers Tudo É Rio, A Natureza da Mordida e Véspera, e a camaronesa Léonora Miano, que vai compartilhar sua visão da diáspora africana ao lado da carioca Eliana Alves Cruz.
“Além de contemplar diversos públicos, a programação traz à discussão temas urgentes, como a emergência climática, que será tratada tanto numa mesa de saberes ancestrais, com o cacique Raoni, como numa essencialmente literária, com Joca Reiners Terron e o colombiano Juan Cárdenas”, ressalta Ana Lima, curadora da 22a edição.
A maior parte dos visitantes sairá de São Paulo. Embora não haja dados oficiais — a Secretaria de Turismo está fazendo o levantamento —, pergunte para qualquer comerciante, morador ou dono de pousada e todos dirão o mesmo: os paulistas são maioria entre os turistas, à frente até mesmo dos cariocas.
Na Pousada Porto Imperial, que está com lotação esgotada para o festival, eles representam 70% das reservas. Trata-se de uma relação antiga, que remonta à década de 50, época da abertura da estrada que ligava o balneário à cidade de Cunha, então o primeiro acesso terrestre àquele recanto paradisíaco. “Ali começam a chegar os primeiros paulistanos de posse, que tinham carro. E passaram a comprar imóveis do centro histórico para restaurar e transformar em casa de veraneio”, conta Diuner Mello, 80, paratiense notório e maior autoridade quando o assunto é a história de sua cidade.
“Os paulistas foram realmente os desbravadores dessa serra. Digo sempre que eles estão em busca do litoral perdido dos sonhos”, brinca. Com a criação da Rio-Santos, em 1972, os braços de Paraty se abriram para outros visitantes, brasileiros e estrangeiros. Hoje, a Flip é uma entre muitas ótimas desculpas para pegar a estrada e visitar essa joia colonial à beira-mar, fundada em 1667.
Paraty além da Flip
Localizada na chamada Costa Verde, no sul do estado do Rio de Janeiro, está cercada de Mata Atlântica bem conservada, cachoeiras, rios e trilhas, exibe um litoral recortado por lindas praias e preserva história em cada pedra. Com uma população de 44 000 habitantes e mais de 600 pousadas cadastradas, a cidade, a 270 quilômetros da capital paulista, oferece atrações para diversos perfis de turistas e um intenso calendário de eventos o ano todo, que inclui festivais de jazz e blues, de fotografia e cinema, e dezenas de festas religiosas, com destaque para a do Divino Espírito Santo.
Um bom ponto de partida numa visita à cidade é caminhar pelo Centro Histórico, que conserva a atmosfera do período colonial, com suas icônicas ruas de pedras irregulares e edifícios dos séculos XVII e XVIII, quando funcionou como o segundo principal porto do país. O casario preservado abriga lojinhas charmosas, cafés, bares, restaurantes e igrejas centenárias.
Aproveite para observar os símbolos maçônicos — resquícios da construção da cidade, projetada por membros dessa sociedade secreta —, apreciar o artesanato local e visitar a Casa de Cultura e ateliês de artistas como Patrícia Sada, Renata Rosa, Aécio Sarti, Dalcir Ramiro e Marcio Franco.
No cais, a Igreja de Santa Rita, de 1722, ergue-se diante da Baía de Paraty. Dali, partem embarcações para quem quer explorar as sessenta praias — mais calmas no litoral norte, ou de ondas, na parte sul — e 65 ilhas que Paraty oferece. O Saco do Mamanguá, um braço de continente que avança 6 quilômetros mar adentro, e a Praia do Sono, na Vila de Trindade, são apenas duas dicas. Prefere cachoeira? Entre as mais famosas estão a do Saco Agudo, com uma queda que forma uma piscina natural com borda infinita para o mar.
Ponto de entrada para as Minas Gerais no século XVII, no ciclo do ouro — em breve, a prefeitura inaugura um museu dedicado a esse período —, Paraty virou um grande entreposto comercial, onde europeus de toda origem vieram abrir casas comerciais. Dessa mistura, do branco com o índio nativo e o negro escravizado, nasce o caiçara. E uma cultura que legou muitos encantos à cidade. “Essa diversidade de território, história e cultura, combinada ao ecoturismo, torna Paraty única”, resume Sandra Barros, secretária municipal de Turismo.
Um passeio mais imersivo se faz visitando o Quilombo do Campinho, uma comunidade matriarcal onde é possível visitar uma casa de farinha e aprender sobre agro- floresta. A Fazenda Bananal, outro passeio imperdível, oferece um mergulho no bioma com caminhadas para conhecer Pancs e observar pássaros, programa que pode encerrar com um almoço no restaurante local e uma visita à exposição no casarão-sede.
Tantos atributos renderam à cidade, em 2019, o título de Patrimônio Misto da Humanidade pela Unesco, dadas suas riquezas cultural e natural. Outro patrimônio derivado dessa mistura sai das panelas. Desde 2017 Paraty ostenta o título, também da Unesco, de Cidade Criativa pela Gastronomia. “É uma cozinha simples e conectada ao território, com ingredientes como pescados e mariscos, farinha de mandioca, banana. A doçaria é muito forte, baseada no melado e na cozinha portuguesa, como o massapão, um doce de calda de açúcar com coco ralado e ovos, assado em forma de empada”, destaca Ana Bueno, paulista que há mais de três décadas vive em Paraty.
Uma das grandes responsáveis pelo florescimento da gastronomia paratiense, ela comanda três restaurantes e o Instituto Paratiano de Gastronomia. Entre seus locais prediletos para comer na cidade ela destaca o Pupu’s Panc, para provar peixes locais, o tailandês Thai Brasil e o Recanto Caiçara, na Ilha do Araújo. Ana acaba de inaugurar a Casa Paratiana na cachaçaria homônima — não se deve esquecer que a cachaça artesanal de Paraty está entre as melhores do país.
“É um lugar que tem muito da minha identidade do Vale do Paraíba, combinada às raízes caiçaras, e traduz esse amor do caipira pelo mar. Quem entra se transporta para a casa de um parente, para a infância”, diz ela, casada com o paratiense e produtor de cachaça Casé Miranda. Um caso de amor que ilustra perfeitamente a união entre São Paulo e Paraty.
Paulista de alma caiçara
Ela tinha 17 anos quando deixou São José dos Campos para curtir um fim de semana de férias em Trindade, então uma pacata vila hippie. Ficou de vez. “Eu me identifiquei completa- mente com a cultura caiçara, a pesca, o cultivo da roça e com aquelas pessoas. Fui capturada”, derrete-se ela, que dois anos depois se estabeleceu em Paraty, onde arrumou um emprego como repórter na TV local. Numa das entrevistas, conheceu o marido, Casé Miranda, então produtor de maracujá. Nessa época, a família dele estava abrindo o restaurante Banana da Terra. Habilidosa com as panelas, entrou de cabeça no projeto com a sogra e fez história. “O primeiro cardápio eu escrevi à mão”, lembra. Além dele, que acaba de completar trinta anos, Ana toca outros estabelecimentos: o Café Paraty, a Casa Paratiana e a loja A Caiçarinha. E fundou o Instituto Paratiano de Gastronomia, onde se dedica a desenvolver o setor através de capacitação e troca com empresários locais, além de aulas com chefs de fora e jantares para o público em geral.
O editor-sênior Fabio Codeço viajou a convite do Instituto Paratiano de Gastronomia.
Publicado em VEJA São Paulo de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913