“É muito difícil ter uma carreira no Brasil”, diz Luísa Sonza
A cantora gaúcha fala sobre a tragédia no seu estado natal, as dificuldades do mercado de shows nacional e a sua relação com São Paulo
“Parei toda a minha vida em prol do Rio Grande do Sul”, conta Luísa Sonza, 25.
A cantora e compositora gaúcha, que mora em São Paulo, tem mobilizado forças nas últimas semanas para ajudar o seu estado natal, que desde o final de abril sofre os efeitos de enchentes que arrasaram cidades.
Seu maior projeto foi o festival Salve o Sul, que aconteceu no Allianz Parque nos dias 7 e 9 deste mês e arrecadou mais de 8 milhões.
No fim de maio, também foram lançados os últimos frutos do seu terceiro disco, Escândalo Íntimo (2023), incluindo um curta-metragem e faixas do álbum que ainda não haviam sido liberadas — como You Don’t Know Me, clássico de Caetano Veloso gravado em duo com o próprio.
“Adiamos ao máximo, mas existe todo um prazo que deve continuar, mesmo com o meu foco e coração direcionado ao meu povo”, disse a artista sobre os lançamentos. Confira a entrevista a seguir.
Qual foi o saldo do festival Salve o Sul, pessoalmente e de arrecadação?
Foi muito importante e especial, como gaúcha e como artista, mostrar essas raízes e essa cultura tão forte que temos, que não é tão divulgada no Brasil. Dar espaço a tantos artistas talentosos da música nativista gaúcha foi emocionante. Só com o valor dos ingressos, arrecadamos cerca de 8,2 milhões. Fora o que ainda conseguimos arrecadar via QR code nos dois dias, com a ampla transmissão na TV. Várias vertentes foram alimentadas com esse festival. Fico muito feliz de ter idealizado isso e ter ganhado essa proporção e visibilidade.
Sua família foi afetada diretamente pelas enchentes? E como está a sua região hoje?
Minha família está bem, mas ainda estão acontecendo enchentes e temporais. O estado ainda é de calamidade pública, com novas áreas sendo atingidas. Já está se falando menos sobre isso, mas o Sul ainda precisa de muita ajuda, a situação é muito crítica. Também tenho uma sensação de que todo mundo ali é família, sabe? Vivi a maior parte da minha vida lá e, para mim, a sensação é que tudo que é meu foi afetado. Acho que o povo gaúcho sempre teve essa união. Vários pavilhões em que eu cantava quando criança e adolescente hoje são abrigos ou estão alagados ou destruídos. Cidades inteiras em que eu passei parte da minha vida também estão destruídas. Têm sido dias bem pesados e tristes.
“Tudo que eu misturo, de bossa nova a milonga, do pop ao funk, ao rock, é o que eu verdadeiramente sou”
Qual é a sua relação hoje com São Paulo, onde você mora?
Eu amo demais São Paulo, aqui me sinto muito em casa. Não troco por nada nesse mundo. Amo minha cidade natal, mas a rotina frenética faz eu me sentir mais pertencente, vamos dizer, do que a calmaria do interior. Vai fazer oito anos que moro aqui. Gosto de ir por todos os cantos, ver as culturas escondidas nesta cidade de pedra. E tenho muito carinho pelo público (paulistano), e recebo de volta. Me sinto entendida aqui.
Você também é sócia da unidade paulistana do Altar Cozinha Ancestral. Me conta essa história?
Estávamos em um jantar aqui (em casa) com uma turma que costuma se reunir e, em determinado momento, começou um papo sobre sonhos. A Dona Carmem (chef do restaurante) então disse que gostaria de abrir um espaço do Altar em São Paulo. A Fátima (Pissarra), a outra sócia investidora comigo, me falou assim: “Vamos fazer?”. A gente se olhou, brindamos e topamos na hora. Em poucos meses subimos esse restaurante, e fizemos com todo o amor do mundo. Volta e meia vou lá e canto, fazemos música ao vivo, me sinto à vontade para não ser aquela artista pop, e lembrar a época em que eu cantava em bares. Sem falar em toda a ancestralidade que o Altar traz, na comida, na decoração. Acho que também Fátima, Dona Carmem e eu podemos contribuir com a história da ancestralidade de matriz africana e nordestina, é um papel e uma responsabilidade que a gente tem que ter e carregar. E essa foi uma forma divertida, orgânica e descontraída de fazer algo melhor.
Seu último álbum, Escândalo Íntimo (2023), foi lançado em agosto. Como você vê o impacto desse disco?
É gostoso ver o que eu consegui fazer com esse disco como artista, como pessoa. Transpor as minhas referências, que podem ser vistas muito como: “Nossa, ela faz de tudo, ela não tem identidade”. Mas, na verdade, isso vem da banda de casamento em que trabalhei por dez anos, tenho influências muito misturadas. Isso é algo muito de interior, e antes me sentia insegura, tinha vergonha das minhas raízes, que não vêm de um ritmo específico, como forró, MPB, funk ou o próprio sertanejo. Mas é o meu ponto forte, sei agradar a um público de qualquer maneira porque fui treinada para isso, trabalhando em casamento, velório, supermercado, jantar, missa e onde me chamassem. Em Escândalo Íntimo, a história se passa em uma fazenda, ando de chaparreira, misturo a cultura gaúcha com a sertaneja e nem por isso deixo de ser uma cantora pop. Sigo descobrindo essa minha origem, tão longe dessa visão progressista que acredito no pop, de tanta quebra de barreiras. Como eu consigo ser muito pop, progressista e quebrar paradigmas, mantendo a minha raiz, o mato, o interior, a agricultura familiar? Isso me foi muito deturpado pela forma que cheguei na internet, acho que eu me perdi ali um pouco. Agora eu consegui trazer minhas referências sem muito medo de não ser original. Porque tudo que eu misturo, de bossa nova a milonga, do pop ao funk, ao rock, é o que eu verdadeiramente sou.
Em maio, duas turnês nacionais foram canceladas, de Ludmilla e Ivete Sangalo. Qual a sua visão sobre o momento do mercado de shows?
Não tenho conhecimento sobre as duas situações, mas, de qualquer maneira, não é motivo para comemorar. É muito difícil ter uma carreira no Brasil. Não é fácil, a gente gasta muito para montar estrutura, pagamos para fazer algo incrível e não ganhar dinheiro com isso, e chega uma hora que realmente não fica viável. Nós, que amamos arte e música, temos vontade de fazer coisas grandiosas, mas não é fácil. Também é um mercado que vai mudando, teve o boom pós-pandemia, e depois tem uma diminuição, uma estabilidade, é muito volátil. Existe um problema muito sério de estrutura de show neste país, existe muito superfaturamento em várias questões e uma desvalorização grande do artista brasileiro em comparação com o artista gringo. E a gente rala mesmo. Em alguns festivais, por exemplo, ou a gente faz um show medíocre com o valor que nos pagam ou temos que investir do nosso bolso para não sair com um show ruim. Essas duas artistas são das maiores deste país, e todo mundo perde, o público, a economia, o Brasil como um todo, quando essas coisas acontecem, independentemente do motivo.
Publicado em VEJA São Paulo de 21 de junho de 2024, edição nº 2898