Lívia Motta é especialista em narrar eventos a cegos
Formada em letras, a profissional ganha a vida com audiodescrição
Sentado no fundo da plateia do Teatro Sérgio Cardoso, na Bela Vista, um grupo de pessoas debatia no último sábado (20) suas impressões sobre o espetáculo de dança do coreógrafo Ismael Ivo que acabara de ser apresentado ali. “Gostei dos movimentos bruscos dos bailarinos”, falava um. “Achei algumas cenas esquisitas, de clima bastante tenso”, comentava outro. Apesar de discorrerem com detalhes sobre o que lhes agradava ou desagradava, esses espectadores haviam experimentado a montagem na total escuridão, já que o grupo era formado por deficientes visuais. Seus ouvidos, entretanto, ficaram bem abertos durante todo o tempo. Pelos fones que tinham recebido na entrada do local, eles acompanharam durante a peça a voz suave da especialista Lívia Motta descrevendo os passos de dança contemporânea, o cenário, o jogo de luzes e a decoração do teatro, entre outros detalhes.
+ Ouça a audiodescrição do espetáculo Francis Bacon, do coreógrafo Ismael Ivo
A profissional ganha a vida realizando trabalhos de audiodescrição, como a técnica é conhecida, nos mais variados eventos culturais, de óperas a exposições. Com sete anos de experiência no ofício, Lívia tornou-se a maior referência nessa área na capital. “É uma mágica fazer o cego ‘enxergar’, o que o ajuda a sentir-se incluído e respeitado”, comenta. Munida de um microfone, ela costuma atuar dentro de uma cabine. Sua voz chega aos deficientes por meio de fones de ouvido. Algumas pessoas ao redor, quando notam a cena curiosa, começam a prestar atenção e, não raro, ficam emocionadas com as reações dos cegos durante os shows. “Com essa iniciativa, podemos não apenas aproveitar tudo, mas também conversar em pé de igualdade com qualquer um sobre o que ocorreu no palco”, diz a professora Cristiana Cerchiari, tão fã da técnica de narração que já convidou cerca de vinte amigos para acompanhá- la nos passeios adaptados.
Formada em letras em Itajubá, no interior de Minas Gerais, Lívia mudou-se para São Paulo após seu casamento, em 1975. Cursou mestrado em linguística na PUC em 1997, mas sua vida mudou dois anos depois, ao receber uma ligação telefônica. Do outro da linha, pediam uma doação ao Instituto Laramara, dirigido a deficientes visuais. Lívia respondeu: “Posso ajudar, mas prefiro colaborar com meu trabalho. Sou professora de inglês”. A partir daí, especializou-se nas aulas para cegos. O aprendizado da língua estrangeira por parte dos alunos especiais virou o tema de seu doutorado, um semestre do qual ela cumpriu na Inglaterra. No exterior, teve seu primeiro contato com materiais audiodescritivos. Na volta para o Brasil, fez alguns serviços informais até desenvolver, em 2006, seu primeiro trabalho oficial na área, na peça O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, no Teatro Vivo. A demanda para outros programas culturais veio naturalmente. Hoje, Lívia realiza em média cinco trabalhos por mês. Cobra aproximadamente 2.500 reais por atuação.
Seu processo de criação consiste em assistir às montagens diversas vezes a fim de escrever um roteiro detalhado em cerca de uma semana. Antes de apresentá-lo, ela exercita as cordas vocais, bebe bastante água e checa os aparelhos para que não haja nenhum erro técnico. Após o espetáculo, faz questão de perguntar aos presentes quais partes curtiram ou não, além de enviar uma ficha de avaliação para preencherem. “Em um desses comentários, disseram que seria bacana se eu anunciasse quem entra no local, já que, muitas vezes, o melhor amigo do cego está em alguma poltrona próxima e ele pode nem ter percebido”, explica. A consultora cultural Paula França, fã de óperas, é uma das que não faltam a essas atividades. “Para mim, a Lívia merecia ser aplaudida de pé”, afirma. “Ela nos oferece novas opções de lazer.”
Com o tempo, surgiram convites para que Lívia realizasse outros serviços, a exemplo de desfiles de moda, missas e congressos. O mais curioso deles ocorreu em dezembro de 2010: um casamento entre dois de seus amigos, a pedagoga Adriana Barsotti, cega desde os 7 anos, e o professor de informática William Cesar Rodrigues, que possui apenas 10% da visão nos dois olhos. Os noivos entraram na igreja com fones de ouvido, equipamento que também foi usado pelos convidados com deficiência. “Foi um momento muito bonito na minha vida”, lembra Adriana. “Graças à narração, pude sentir cada detalhe da cerimônia. Ganhamos nosso melhor presente de casamento.”
O DISCURSO AFINADO DE LÍVIA MOTTA
Local de nascimento: Itajubá, em Minas Gerais (radicada em São Paulo desde 1975)
■ Formação: graduação em letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Itajubá, com mestrado e doutorado na PUC-SP
■ Profissão: audiodescritora, há sete anos
■ Trabalhos: cinco por mês. Descreve peças de teatro, espetáculos de dança, óperas, filmes, exposições e eventos sociais a cegos