A Feira do Livro do Pacaembu chega à 3ª edição com nove dias e mais de 80 autores
Evento na Praça Charles Miller terá a participação de destaques internacionais, como Camila Sosa Villada e Jamaica Kincaid; confira a programação
Uma feira de rua com tudo que ela deve ter: ambiente despojado e acolhedor, opções acessíveis a diferentes perfis de freguês e, claro, uma boa dose de ecletismo. Todas essas características cabem perfeitamente à Feira do Livro, que de sábado (29) ao dia 7 de julho ocupa a Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu (atual Mercado Livre Arena), com sua terceira edição, maior e ainda mais democrática. A programação estendida para nove dias, com muitas novidades (veja o quadro), traz mais de oitenta autores, entre destaques internacionais, como Camila Sosa Villada e Jamaica Kincaid, e brasileiros. Neste ano, 55 mesas de debate dividem espaço com 150 expositores, que incluem editoras, livrarias, museus, instituições e sebos, espraiados por 97 tendas ao redor do gramado central.
Desde 2022, o evento organizado por Paulo Werneck, da Associação Quatro Cinco Um, e Álvaro Razuk, da Maré Produções, atrai mais paulistanos interessados em literatura para a rua. “A estreia foi um grande mutirão. Tivemos apoio de algumas instituições culturais e vários autores abriram mão do cachê”, explica Werneck, que não recebeu nenhum incentivo governamental para a edição inaugural. No ano seguinte, teve acesso a mais recursos financeiros, parte deles via Lei Rouanet, ampliou a programação e recebeu um público de 35 000 pessoas. “Acreditamos que esse número vai aumentar bastante neste ano”, revela Razuk, arquiteto e responsável pela montagem, que só começou cinco dias antes da abertura, por causa de outro evento no mesmo espaço. “Parte da proposta é aceitar que existem outras pessoas que usam aquela praça”, defende Werneck.
No lugar de carros, os 15 000 metros quadrados do estacionamento serão ocupados pelas tendas, palcos, cadeiras de praia, transeuntes e bicicletas. Os organizadores, inclusive, incentivam que os visitantes usem o transporte público, em especial o trólebus 408A-10, que, além de sustentável, carrega um nome bastante oportuno: Machado de Assis. “O transporte coletivo é amigo dos leitores”, aponta Werneck, citando Lilia Guerra, autora presente na programação, que escreveu um livro inteiro dentro do ônibus.
A ideia de ser um evento de rua é central para a feira, que nasceu depois de um longo período de distanciamento social por causa da pandemia. Com uma programação gratuita e eclética, os organizadores buscam atrair um público diverso e formar novos leitores. Uma maneira é contemplar discussões em pauta, como racismo, maternidade e inteligência artificial. “A ideia é que a feira seja como uma revista. Você vira a página e tem um novo assunto. Cabe de tudo, de matemática a culinária”, afirma Werneck.
Em 2024 os espaços de debate serão ampliados, assim como o que chama de “bibliodiversidade”, através de iniciativas como o auxílio financeiro para a participação de editoras periféricas. “O mercado editorial está se concentrando e os eventos de literatura têm dado cada vez menos espaço para editoras negras e indígenas”, pontua. Como se estende à primeira semana de férias escolares, pela primeira vez, a feira vai oferecer programação especial para o público infantil e juvenil, além de palestras voltadas para os educadores. “A geografia do lugar permite soltar as crianças sem muita preocupação, o que é raro em São Paulo”, completa Werneck. Na praça de alimentação, o cardápio variado oferece de culinária judaica a sorvetes, e o Bubu, restaurante localizado no Estádio, estará funcionando normalmente, inclusive como sede de um dos tablados literários.
› Edição ampliada. A sugestão de expandir de cinco para nove dias veio da prefeitura, que manifestou o desejo de que a feira incorporasse a primeira semana de férias escolares. Por isso, parte dos eventos será voltada para alunos e professores. “Estamos indo na direção dos calendários das feiras de rua, como a de Porto Alegre”, afirma Werneck.
› Para professores. Nos dias de semana, uma programação dedicada à educação convida docentes a participar de debates sobre antirracismo nas escolas, crise climática, saberes indígenas e quilombolas e a história do Brasil e da língua portuguesa. Os educadores também receberão benefícios dos estandes, como livros, bottons e sacolas.
› Para os pequenos. Selos juvenis expõem pela primeira vez e autores como Carol Chiovatto prometem atrair o público mais jovem. O coletivo Infantofaz fará oficina de ilustração de livros de artista e fanzines, enquanto Estela Vilela ensinará os pequenos a confeccionar poemóbiles, poemas tridimensionais que podem ser lidos em vários sentidos.
› S.O.S Rio Grande do Sul. Em parceria com a organização Redelê, o evento programou doação de livros para as bibliotecas afetadas pela tragédia climática no Rio Grande do Sul. A meta é coletar 40 000 livros. O projeto contará com uma equipe de especialistas voluntários para realizar a triagem e uma van que recolherá doações acima de 150 exemplares.
› Tablados literários. Além dos dois palcos oficiais, outros três espaços menores abrigarão debates e sessões de autógrafos como parte de uma programação paralela definida pelas próprias editoras. Nomes como Mariana Salomão Carrara, Sidarta Ribeiro, Hanna Limulja e Vladimir Safatle marcarão presença nesses tablados.
› Taxa zero. Para promover a “bibliodiversidade”, o evento ofereceu, com apoio do Instituto Ibirapitanga, isenção na taxa de participação para editoras periféricas apresentarem seus títulos. Oito expositores receberam o apoio nesta edição, entre eles o Instituto Socioambiental (ISA), a Câmara Periférica do Livro (CPL) e a LiteraRUA.
Os trabalhos se iniciam no sábado (29), às 10h, com a abertura no Palco da Praça, seguida de mesas com convidados internacionais como a francesa Hannelore Cayre, o deputado português Rui Tavares e a argentina Camila Sosa Villada, grande destaque da edição, que depois de uma participação na Flip, em 2022, volta ao Brasil para lançar três livros na feira. Outro nome internacional de peso é Jamaica Kincaid, autora de Annie John e Autobiografia de Minha Mãe (Alfaguara). Nascida em Antígua e Barbuda, ela é professora da Universidade Harvard e aborda temas como sexualidade, diáspora e colonialismo.
Na seleção brasileira, uma mesa reúne grandes nomes gaúchos, como Jeferson Tenório e Veronica Stigger, enquanto uma campanha organizada pela feira vai arrecadar livros para o estado do Rio Grande do Sul (veja mais no quadro). Grandes nomes paulistanos da literatura contemporânea como Natalia Timerman, Andréa Del Fuego, Lilia Guerra e Marcelo Rubens Paiva encontram intelectuais como o historiador Luiz Felipe de Alencastro e o linguista Marcos Bagno. A psicanálise de Christian Dunker e a poesia musical de Nando Reis e de Martinho da Vila também fazem parte da saborosa sopa de letras. Quem quiser tietar seu autor preferido, após as conversas eles assinarão exemplares na Tenda de Autógrafos da Dois Pontos, a livraria oficial do evento.
Travestis que vivem 178 anos, criam asas e, nas noites de lua cheia, se transformam em “lobiscates”, habitam o universo literário de Camila Sosa Villada, escritora argentina que é um dos maiores destaques desta A Feira do Livro. Formada em comunicação social e teatro na Universidade Nacional de Córdoba, Camila ganhou relevância internacional com o premiado O Parque das Irmãs Magníficas (Tusquets), livro que acompanha um grupo de travestis que viram a noite num parque se prostituindo. Com cenas de violência brutal intercaladas por elementos fantásticos, a trama se desenvolve quando uma das personagens, uma anciã com mais de 150 anos, encontra um bebê abandonado e decide criá-lo. No evento, a escritora lançará três títulos. Em entrevista à Vejinha, Camila disse que Tese sobre uma Domesticação (Companhia das Letras), sobre uma atriz trans que adota um menino soropositivo de 6 anos, é uma resposta à reação dos leitores de O Parque das Irmãs Magníficas. “As pessoas passaram a me ver com piedade”, lamenta.
Os outros dois títulos resgatam o início da carreira. A Namorada de Sandro, que será lançado pela Tusquets, uma coletânea de pequenos textos autobiográficos que desvendam os mistérios do amor travesti, foi sua primeira obra publicada. Já A Viagem Inútil (Fósforo), seu segundo trabalho, tem valor especial para ela. “Foi o livro que me fez ser considerada uma escritora”, conta. Apesar de flertar com a fantasia, Camila nega o rótulo de realismo fantástico, tão aclamado na literatura latino-americana. “Não gosto que me coloquem em nenhum tipo de gênero”, defende. Prefere dizer que faz “ficção científica pobre”. A produção ficcional é resultado de suas observações. “Sempre olhei ao redor de um lugar de privilégio, que é ser uma ninguém”, pontua, acrescentando que isso tem se perdido com a fama e que a popularidade tem afetado sua escrita. “É uma pressão muito grande. Não quero perder leitores e não quero que se sintam decepcionados.”
A literatura travesti, segundo ela, ainda é muito incipiente. “Reconheço que meu caso é muito particular”, diz. Mas, antes da fama, ela conta que se prostituiu para sobreviver. “Era o que tinha que fazer. Tentei conseguir outros trabalhos, mas as portas não se abriam. Eu tinha que comer e tinha um corpo à mão. Foi um movimento natural.” Os 178 anos vividos por Tia Encarna levanta a questão da baixa expectativa de vida das pessoas trans, hoje em 35 anos, tanto no Brasil quanto na Argentina, segundo a ONU. Aos 42, Camila diz: “Sinto que estou vivendo um tempo extra”.
Sérgio Vaz, criador do Sarau da Cooperifa, no Jardim Guarujá, é um entusiasta da Feira. “É um evento democrático”, afirma ele, que luta por mais literatura periférica nas estantes. Criado no Jardim Ângela, bairro que na década de 90 foi eleito o mais violento do mundo, o poeta conta que São Paulo moldou sua literatura. “Tenho uma relação de amor e ódio com a cidade. Percebo tudo o que tem de errado e tento transformá-la, por meio da poesia”, revela. Vaz compartilha do sentimento de Paulo Werneck e Álvaro Razuk de que a literatura deve estar à disposição do povo: “A arte precisa descer do pedestal e beijar os pés da comunidade. É preciso dessacralizá-la. Sagrado não é quem escreve, sagrado é quem lê”.
E nenhuma cidade é mais adequada para isso do que São Paulo. “É uma das capitais editoriais do mundo”, explica Werneck, citando o expressivo número de leitores, editoras, autores e livrarias que se concentram na cidade. “Nunca se leu ou se produziu tanto como na periferia ultimamente. As pessoas estão consumindo poesia através da oralidade, em saraus, slams, batalhas de rima e hip-hop”, completa Sérgio Vaz. Neste fim de semana, não há dúvidas, todas as tribos se encontrarão na Praça Charles Miller.
Autores contemporâneos da cidade que serão destaque na feira
› Andréa Del Fuego
Vencedora do Prêmio José Saramago Literário em 2011 por Os Malaquias, lançou A Pediatra, também pela Companhia das Letras, em 2021. O texto acompanha uma profissional de saúde infantil com um notável desprezo por crianças.
› Lilia Guerra
A auxiliar de enfermagem do SUS publicou, em 2023, o elogiado O Céu para Bastardos (Todavia), todo escrito no ônibus para o trabalho, sobre uma trabalhadora doméstica que vive na periferia.
› Iara Biderman
Jornalista com passagem pela redação da revista CLAUDIA, da Editora Abril, ela estreia na ficção com o livro de contos Tantra e a Arte de Cortar Cebolas, publicado pela Editora 34.
› Natalia Timerman
A psiquiatra é autora de Copo Vazio, sucesso editorial que acompanha uma mulher adulta vítima de ghosting, ou sumiço repentino, e de As Pequenas Chances, romance escrito a partir do luto vivido pela morte do pai, ambos pela editora Todavia.
› Rashid
O rapper e produtor de 36 anos publicou Ideias que Rimam Mais que Palavras em 2018, pela editora LiteraRUA. O livro narra as histórias que inspiraram sete músicas produzidas entre 2008 e 2014, entre elas Quando eu Morrer e Gratidão.
PROGRAME-SE
Sábado, 29 de junho
Palco da Praça › 10h: Abertura
› 11h45: Christian Dunker e Natalia Timerman. Mediação: Tati Bernardi
› 13h30: Lenora de Barros. Mediação: Ana Carolina Ralston
› 15h15: Bernardo Esteves e Adriana Abujamra. Mediação: Eduardo Neves
› 17h: Martinho da Vila. Mediação: Adriana Couto
› 19h: Stênio Gardel. Mediação: Schneider Carpeggiani
Auditório Armando Nogueira
› 10h15: Hannelore Cayre. Mediação:Eduardo Muylaert
› 12h: Rui Tavares e Sergio Fausto. Mediação: Camila Rocha
› 14h: Rubens Ricupero
› 15h30: Neca Setubal, Inês Lafer e Carol Pires
› 17h30: Betina González e Andréa del Fuego. Mediação: Beatriz Muylaert
Domingo, 30 de junho
Palco da Praça
› 10h: Marcelo Viana Mediação: Bernardo Esteves
› 11h45: Rui Tavares. Mediação: Sofia Nestrovski
› 13h30: Iara Biderman e Odorico Leal. Mediação: Maria Carvalhosa
› 15h: Rita Lobo. Mediação: Isabelle Moreira Lima
› 17h: Tatiana Salem Levy e Claudia Piñero. Mediação: Paula Sacchetta
› 19h: Camila Sosa Villada. Mediação: Adriana Ferreira Silva
Auditório Armando Nogueira
› 10h15: Nara Vidal. Mediação: Eliana Alves Cruz
› 12h: Alice Carvalho e Beatriz Bracher
› 14h: Caetano W. Galindo. Mediação: Eliana Alves Cruz
› 15h30: Adelaide Ivánova e Mar Becker. Mediação: Irene de Hollanda
› 17h30: Caetano W. Galindo e Marcos Bagno. Mediação: Luana Chnaiderman
Segunda, 1º de julho
Palco da Praça
› 15h: Edneia Gonçalves, Eugênio Lima. Mediação: Bianca Santana
› 16h30: Seminário de livro, leitura e biblioteca com Ana Carolina Carvalho e Morgana Kretzmann. Mediação: Dianne Melo
› 18h: Aula pública de Libras com Flávia Brandão
› 19h: Mar Becker, Jeferson Tenório, Clara Averbuck, Veronica Stigger, Morgana Kretzmann e Paulo Scott Terça, 2 de julho Palco da Praça
› 15h: Kerexu Mirim e Luiz Ketu. Mediação: Tatiane Maíra Klein
› 16h30: Seminário de livro, leitura e biblioteca com Aline Frederico e Debora Vaz. Mediação: Patricia Auerbach
› 18h: Eliane Robert Moraes e Reinaldo Moraes › 19h30: Luiz Antonio Simas, Sérgio Rodrigues e Daniel Kondo
Quarta, 3 de julho
Palco da Praça
› 16h30: Seminário de livro, leitura e biblioteca com Renato Gama, Waldete Tristão e Vó Geralda. Mediação: Neide Almeida
› 18h: James Baldwin, 100
› 19h30: Gregório Duvivier e Bruna Beber. Mediação: Fernando Luna
Quinta, 4 de julho
Palco da Praça
› 15h: Bia Crespo, Caio Yo e Carol Chiovatto
› 16h30: Seminário de livro, leitura e biblioteca com Lara Rocha e Fernanda Sousa. Mediação: Janine Durand
› 18h: Nando Reis. Mediação: Roberta Martinelli
› 19h30: Rodrigo Hübner Mendes e Walter Casagrande
Sexta, 5 de julho
Palco da Praça
› 15h: Lucas Rocha e Aline Zouvi. Mediação: Clara Rellstab
› 16h30: Seminário de livro, leitura e biblioteca com Diana Navas e Ana Barbara. Mediação: Marisa Lajolo
› 18h: Juliana Borges
› 19h30: Rashid e Mel Duarte. Mediação: Iza Moi
Auditório Armando Nogueira
› 17h30: Mozarildo Yanomami e Darysa Yanomami. Mediação: Hannah Limulja
Sábado, 6 de julho
Palco da Praça
› 10h: Lilia Guerra. Mediação: Roberta Martinelli
› 11h45: Juliana Borges e Clayton Nascimento
› 13h30: Sérgio Vaz. Mediação: Camilla Dias
› 15h: José Henrique Bortoluci e Julia de Souza. Mediação: Paulo Roberto Pires
› 17h: James Green e Renan Quinalha. Mediação: Helena Vieira
› 19h: Marcelo Rubens Paiva e Luiz Felipe de Alencastro. Mediação: Patricia Campos Mello
Auditório Armando Nogueira
› 10h15: Henry Louis Gates Jr. e Jamaica Kincaid. Mediação: Flavia Lima
› 12h: Dan e Bruno Paes Manso. Mediação: Amauri Arrais
› 14h: Michel Nieva e Joca Reiners Terron. Mediação: Schneider Carpeggiani
› 15h30: Camila Fabbri › 17h30: Jabari Asim
Domingo, 7 de julho
Palco da Praça
› 10h: Geni Núñez e Vera Iaconelli. Mediação: Martha Nowill
› 11h45: Maria Adelaide Amaral e Ivan Angelo. Mediação: Marta Góes › 15h: João Moreira Salles e Pablo Casella. Mediação: Maria Guimarães
› 17h: Rosa Freire d’Aguiar. Mediação: Ruan de Sousa Gabriel
Auditório Armando Nogueira
› 12h: Rita Kohl e Luara França
› 14h: Ana Flávia Magalhães e Hebe Mattos
› 15h30: Pádua Fernandes. Mediação: Luciana Reis › 17h30: Silvana Tavano. Mediação: Iara Biderman
Publicado em VEJA São Paulo de 28 de junho de 2024, edição nº 2899