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“Minha comunidade é o que me fortalece”, afirma Dona Jacira

Em nova temporada de seu podcast, a escritora e artista plástica reflete sobre sua vida no Jardim Brasil Novo e a necessidade humana de afeto

Por Mattheus Goto
27 out 2023, 06h00

Jacira Roque Oliveira, ou simplesmente Dona Jacira, é uma enciclopédia humana. Conversar com a escritora e artista plástica de 58 anos é absorver aprendizados e reflexões sobre diversos campos da vida, do trato com a natureza ao modo de viver em sociedade.

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É possível ouvir uma parte de seus saberes no podcast Café com Dona Jacira, que acaba de ganhar uma segunda temporada, com o primeiro episódio lançado na quarta-feira (25) — e mais cinco episódios semanais até o fim de novembro. Em um tom casual, a mãe de quatro filhos, entre eles os músicos Emicida e Evandro Fióti, fala sobre assuntos como ancestralidade, racismo, maternidade e cultura.

Nascida e criada na Zona Norte da capital paulista, Jacira teve que enfrentar traumas e violências desde criança. Hoje, além de ser um exemplo para os filhos, ela se dedica a disseminar conhecimentos sobre alimentação, arte e política dentro de seu lar, no Jardim Brasil Novo, onde hospeda um centro cultural com jardim.

Que temas serão abordados na nova temporada?

O tema principal é olhar para trás, para entender aonde cheguei e aonde quero chegar. Eu, que sou uma mulher negra, da periferia, que educo a partir da minha cozinha, do meu jardim e das minhas artes, tenho um passo importante na evolução do meu povo. Começo a temporada falando sobre uma situação que vivi, quando estava desenganada da vida: tinha três filhos, estava grávida do quarto e fui demitida por causa da gravidez. O pai se omitiu, pois eu trabalhava em um motel e ele achava que a criança não era dele. Passamos por necessidade, até que uma vizinha, chamada Dulce, chegou lá em casa e viu que só tínhamos arroz para comer. O prenúncio da desgraça. Ela falou que poderia contar com a ajuda dela e me incentivou a trabalhar como empregada doméstica, entrar na Justiça contra o antigo emprego e esquecer aquele homem.

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Que partes da sua história foram fundamentais para enfrentar os desafios?

Hoje, aos 58, consigo perceber que minha intuição sempre esteve certa. Antes, ela não era validada. Quando jovem, eu tinha muitos desejos, como o de escrever, que percebi que não conseguiria realizar tão cedo. Na periferia, não aceitavam que mulheres estudassem, achavam que era criar problemas. Ouvi muito isso da minha família e do meu primeiro parceiro. Me casei com 13 anos. Aos 20, deixei de lado o sonho de escrever e comecei a ir atrás da carteira assinada. Minha intuição continuava dizendo para tomar as rédeas da minha vida e seguir o que queria. Foi um conflito. Fiquei viúva, e aí pude voltar para terminar o fundamental. A escola me levou a entender que eu poderia escrever. Fui estudar enfermagem e, em via de completar 30 anos, consegui entrar em um grande hospital. Isso mudou muito a minha forma de ver as coisas. Três anos depois, chega o diagnóstico de insuficiência renal e derruba tudo de novo. Foram muitos processos, tive que fazer hemodiálise. Mas quando começo a escrever de fato um livro (Café, de 2019), começo a validar a minha intuição. E percebo que o saber é para todo mundo.

Como foi cuidar dos filhos durante esses momentos?

Estudando enfermagem, percebi que reproduzia para os meus filhos muito da violência que sofri, achando que a falta do básico era mérito. Quando eles foram correr atrás dos sonhos deles, eu tinha medo. Da polícia pará-los na rua, de violências. Pensava que era perigoso, porque estávamos longe dos lugares de ensino hegemônico. Colocam na nossa cabeça que a periferia não ensina nada. Tive que entender que não era assim. Houve muitas mortes aí, deixei de ter contato com familiares, que ficaram pelas igrejas pentecostais. Quando os meninos ascenderam, não nos deixaram, como normalmente acontece. Percebi que a arte é a força dos meus filhos. Tudo o que eles falam no rap tem a ver comigo, conosco. Eles começaram a ocupar vários lugares, e me levaram junto. Isso revitalizou a voz dentro de mim.

Todas as pessoas precisam de afeto. Foi o que eu entendi ao longo da vida, desde quando tive ajuda da minha vizinha até a ascensão dos meus filhos à fama

Dona Jacira

Como os tempos mudaram desde aquela época?

Foi uma evolução tremenda. Antes não se falava tanto sobre racismo quanto hoje. Quando comecei a entender palavras africanas, me perguntei por que não as conhecíamos, por que não as ensinamos na sala de casa como fazem coreanos e japoneses. Essas outras etnias vieram com famílias completas no ciclo migratório. Nós fomos separados quando fizemos a migração. Sempre questionei muito o contexto em que vivia. Por que não existiam professores negros? Por que não existiam escritores negros? E por isso era muito malvista na minha comunidade na época, porque vivia querendo saber. Hoje é diferente. Minha casa virou uma escola, onde posso ensinar o que aprendi.

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Qual é a importância do trabalho da sua casa-escola?

As pessoas dizem que os saberes da cozinha não têm valor na política e na literatura. Como não? O mundo consome cada vez mais alimentos processados, é um envenenamento. Eu vivi um processo de adoecimento quando a minha situação econômica só permitia comer esse tipo de comida. É uma ligação direta. Então meu jardim comestível é político, sim. As cozinhas comunitárias abrem a possibilidade para muitas crianças se alimentarem melhor.

Em que outros projetos está trabalhando no momento?

Acabamos de terminar a diagramação do meu segundo livro, que espero que saia ainda neste ano. O primeiro foi um grito pela infância, ele basicamente dizia que, se continuarmos maltratando a infância, não vamos chegar muito longe. O próximo fala sobre escudo, quais são os nossos escudos. Nós somos mamíferos, não somos frios como répteis. Todas as pessoas precisam de afeto. Foi o que eu entendi ao longo da vida, desde quando tive ajuda da minha vizinha até a ascensão dos meus filhos à fama.

Como caracteriza hoje o seu olhar para a vida?

Sou muito otimista. Estou sempre criando novas possibilidades. Nós (da periferia) somos um povo subjugado pela distância proposital, para se tornar um exército de reserva, pois precisam da nossa mão de obra. Estamos cansados do romantismo do skin care caucasiano. O capitalismo coloca muita mentira na nossa cabeça. A gente não sobrevive sem as forças da comunidade. Minha comunidade é o que me fortalece.

Publicado em VEJA São Paulo de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865

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