“Vejo humanidade em Nando [Sintonia], nunca o rotulei como bandido”

Christian Malheiros, que interpreta jovem envolvido com o tráfico, reflete sobre os filmes de periferia e pede mais negros no audiovisual

Por Barbara Demerov
Atualizado em 27 Maio 2024, 19h11 - Publicado em 26 nov 2021, 06h00
O ator negro Christian Malheiros posa para a foto com a mão apoiada no rosto. Ele está sentado e de camisa jeans
Nascido em Santos, mora na capital: “é uma selva, mas eu gosto” (Gustavo Canuto/Divulgação)
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Aos 22 anos, Christian Malheiros tem vivido uma espiral ascendente. Depois da estreia no cinema, em Sócrates (2018), que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Independent Spirit Awards, o ator brilha na Netflix como Nando, da série Sintonia (que teve a terceira temporada confirmada), um jovem envolvido com o tráfico, e Mateus, do filme 7 Prisioneiros. Luta para combater os rótulos de seus personagens. “Vejo humanidade em Nando, nunca o tachei de bandido”, diz.

Desde a atenção que Sócrates conquistou, sua visão de mundo mudou devido à profissão de ator?

Mudou e continua mudando. Comecei minha carreira no teatro. Quando fui para o cinema, entendi que ele cumpre uma função social no Brasil. Usamos a comédia e o drama para escancarar abismos. Estamos ali para falar sobre questões que precisamos resolver e nos apoiamos na arte para tentar mudar a realidade.

Você vê semelhanças entre seus personagens de Sintonia e 7 Prisioneiros?

As semelhanças existem a partir do momento em que são jovens pretos em condições sociais nada favoráveis. Eles precisam lutar pela vida. E esses personagens partem de um lugar íntimo: também sou um jovem preto que teve de lutar por muitas coisas na vida (nasceu na periferia de Santos).

Sintonia se manteve no Top 10 da Netflix por um bom tempo. Antes das séries, Cidade de Deus teve sucesso mundial. O que nos encanta nas histórias sobre as comunidades?

Cidade de Deus fala da realidade do Rio de Janeiro, algo presente e específico. Sintonia retrata São Paulo. É a mesma coisa? Não, são mundos diferentes. São muitos “Brasis” diferentes dentro do nosso país. O importante é contar histórias que são jogadas à margem. Hoje nós temos um pouco mais de visibilidade para esses personagens que foram ignorados. Elas fazem sucesso porque sempre existiram. Só que hoje existe a abertura para falarmos disso.

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Você considera fiel o retrato da periferia de São Paulo em Sintonia? (Na série, são três protagonistas, ligados ao tráfico, ao funk e aos evangélicos.)

Sim. Trabalhamos para isso. Muitos atores da série vêm da periferia. Eu venho de periferia e estou ali contando a minha história. Em meu núcleo, o mais “punk rock”, há atores e não atores que vivem aquela realidade. Todos contribuem para que a visão seja a mais realista possível.

Quais são suas expectativas agora que a série ganhará uma terceira temporada?

Esse é um trabalho potente e especial. Os personagens deram certo e as pessoas se reconheceram neles. Como ator, na nova temporada, quero fazer com que a essência de Nando não seja perdida. Foi uma construção muito bonita que fizemos até aqui. Vejo humanidade nele desde o início, nunca o tachei de bandido.

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Você tem mais de 1 milhão de seguidores na internet. No que a fama muda a vida de alguém?

Para mim, mudou no quesito responsabilidade. Eu passei a entender a responsabilidade que tenho com o público, a representatividade, a importância de se ver no outro. Tive a sorte de fazer personagens realistas. É possível “encontrá-los” (na sociedade). Minha maior luta é humanizá-los, porque é muito fácil eles serem tachados. Em 7 Prisioneiros, não existe isso de o personagem de Rodrigo Santoro ser o vilão e o meu personagem ser o bonzinho. Existe um dilema, é isso que quero entregar. A partir dele, vem a reflexão. Eu já reneguei a internet. Sumia e desativava o Instagram. Quando entendi o que essa plataforma poderia fazer para que meu trabalho chegasse a outras pessoas, mudei minha concepção.

“Somos uma ameaça contra o pensamento retrógrado, o preconceito e tudo que anula a nossa existência. Continuaremos sendo”

Você nasceu em Santos e agora mora em São Paulo. O que mais gosta em ambas as cidades?

Santos é uma ilha. Se você for reto, acaba na praia. Se voltar, acaba no porto. Há uma noção de espaço. Moro em São Paulo há cinco anos e não dá para saber onde tudo começa e termina. Santos tem essa coisa mais “família”, parece que você está mais protegido. São Paulo é uma selva, mas eu gosto disso, da diversidade, de tudo ocupando o mesmo espaço. É genial. Sinto liberdade aqui.

Você está com 22 anos. Se sente otimista ou pessimista com o futuro do país?

Quando comecei a fazer teatro, há doze anos, as coisas já não estavam fáceis. Mas eu nunca vi nada ser fácil. Só vi lutas e batalhas. Acho que essa é a função do artista, porque somos vistos pelo governo como uma ameaça. Mas não encaro de forma ruim, pelo contrário. Somos uma ameaça contra o pensamento retrógrado, o preconceito e tudo que anula a nossa existência. Continuaremos sendo. Essa é a minha missão em um país que não representa ninguém. Me sinto otimista porque nossa importância foi vista na pandemia. Sem filmes, músicas, séries e novelas, todo mundo estaria enlouquecido. O artista está na linha de frente da cura da alma. Já quanto ao futuro do país, é difícil. Tento encontrar uma definição, mas só saberemos em 2022, nas urnas.

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Acha que os dias de preconceito contra o audiovisual brasileiro chegaram ao fim ou ainda existe um longo caminho pela frente?

Ouço pessoas falarem — algumas até com orgulho — que não gostam de cinema brasileiro. Sempre que ouço isso, respondo: ‘Isso não é uma dádiva’. Só a gente sabe contar nossas histórias, só a gente sabe o que passamos aqui. O cinema brasileiro valida a nossa existência e dá margem para refletir e transformar. O que acontece em 7 Prisioneiros acontece na Zona Leste de São Paulo. Pessoas trabalhando em condições precárias no Brás. Como conseguimos mudar o que está debaixo do nosso nariz?

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Nos últimos tempos muito se discutiu sobre representatividade negra e, como consequência, tivemos um aumento de protagonistas negros no cinema e no streaming. No que essa indústria ainda precisa melhorar?

Demos um passo pequeno. Temos protagonistas, mas e as equipes? Projetos formativos? Existem núcleos de roteiristas negros e LGBT focados em desenvolver narrativas com propriedade? Não adianta jogar personagens no meio da dramaturgia. Falta evoluir em equipes e construção. Falo de produtores, assistentes de direção, essa galera ocupando espaços que encabeçam o set. Eu ainda não vi isso.

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Publicado em VEJA São Paulo de 01 de dezembro de 2021, edição nº 2766

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