Antonio Fagundes e Christiane Torloni se reencontram em peça ‘Dois de Nós’
Em seu primeiro trabalho no teatro, a dupla discute a relação com um casal trinta anos mais jovem, papéis de Alexandra Martins e Thiago Fragoso
Lá se vão 43 anos desde o primeiro encontro profissional, nos bastidores de Amizade Colorida, série da TV Globo exibida em 1981. Antonio Fagundes, o protagonista, era Edu, um fotógrafo mulherengo que, a cada episódio, se envolvia com uma nova mulher e deparava com questões sensíveis ao universo masculino, como machismo e impotência. Christiane Torloni era Patrícia, uma de suas pretendentes, com quem dividiu o segundo capítulo. Foi um encontro rápido, até porque o seriado, cercado de polêmicas e acusado de imoral — em dado momento, Edu se envolve com mãe e filha ao mesmo tempo —, acabou cancelado antes do fim. Mas foi suficiente para dar início a uma parceria que perpassaria a carreira de ambos e se fortaleceria em uma série de trabalhos na TV e no cinema.
“Quando estamos gravando, passamos mais tempo com o colega do que com a família”, explica Fagundes. “Ele tem uma cultura tão grande, tínhamos trocas maravilhosas”, derrete-se a amiga. Por pouco não se encontraram antes, em Dancin’ Days (1978). Pretendida pelo diretor, Daniel Filho, Torloni acabou não sendo liberada porque já estava escalada para interpretar Gina, personagem-título que seria sua primeira protagonista. “Já estávamos prometidos”, brinca ela, que vivera com Fagundes uma série de casais emblemáticos, como Diná e Otávio, par icônico do sucesso A Viagem (1994), e no filme Besame Mucho, de 1987, sobre dois casais que têm suas vidas inspiradas pela canção homônima da mexicana Consuelo Velásquez.
Reencontro no Tuca
Mais uma vez, a dupla encarna marido e mulher em Dois de Nós, espetáculo escrito por Gustavo Pinheiro e dirigido por José Possi Neto, que estreia no dia 5 de setembro, no Teatro Tuca. Será a primeira vez que os dois se encontram no palco. “A gente sempre falava em fazer teatro juntos, mas nunca conseguimos conciliar agendas na época de TV Globo”, lembra Fagundes, produtor da peça, que logo pensou na atriz. Agora sem contrato, eles estão mais livres, embora ambos tenham sempre tocados carreiras prolíferas paralelas à emissora. Ele produziu dezenas de filmes e espetáculos. Ela fez novelas na Manchete, filmes e construiu um consistente repertório no teatro-dança, pautado na expressão corporal.
Neste novo trabalho, relações do passado são colocadas em perspectiva no tempo presente, quando um casal na casa dos 70 anos (Torloni e Fagundes) depara com outro trinta anos mais jovem, vivido por Alexandra Martins, também produtora e casada com Fagundes, e Thiago Fragoso. “O texto propõe que as pessoas lutem pelas relações, num tempo em que ninguém se fala diretamente, só mantém os afetos no campo digital”, diz Torloni.
O projeto começou a se desenhar em 2017, quando Fagundes e Alexandra foram assistir à peça A Tropa, escrita por Gustavo. “Estava num casamento e recebi um telefonema do Fagundes, dizendo que tinha adorado e que queria me conhecer”, recorda o autor, também criador de A Lista, que segue turnê estrelada por Lilia Cabral e a filha, Giulia Bertolli, e vai virar filme em breve. Marcaram um jantar, do qual o autor saiu com a incumbência de conceber um texto para os dois. Gustavo resgatou uma ideia antiga, que teve ao assistir pela primeira vez a uma montagem de Três Mulheres Altas, do dramaturgo americano Edward Albee (1928-2016), que acompanha o embate de três personagens de diferentes idades. “Fiquei acachapado e saí com vontade de criar algo naquela linha, mas centrado num casal”, conta o autor.
“Gustavo é um dos grandes dramaturgos contemporâneos. Tem força e carpintaria, e sabe se comunicar com o público. É uma honra ter um autor como esse escrevendo para mim”, elogia Alexandra. Ela conheceu Fagundes nas gravações de Carga Pesada, em 2007, e, seis meses depois, engataram um relacionamento que já dura dezessete anos. Os dois têm uma diferença de idade semelhante à dos personagens na peça — ele tem 75, ela, 45. “Isso nunca foi problema. Nós nos complementamos. Apesar da formação que teve, ele é muito aberto. É um homem deste tempo”, diz ela. Com o marido, Alexandra produziu espetáculos como Baixa Terapia, que ficou em cartaz por cinco anos, e os filmes Contra a Parede e Maldito Benefício (veja o quadro). “Trabalhar com ele é um privilégio. Tanta experiência vem na mesma proporção de sua generosidade.”
Antonio Fagundes e Alexandra Martins se conheceram nas gravações de Carga Pesada, em 2007. Seis meses depois, engataram um relacionamento que já dura dezessete anos. Ao longo desses anos, o casal divide vida pessoal e trabalho. Contracenaram na novela Bom Sucesso 1 e desenvolveram uma série de produções em conjunto, como os filmes Contra a Parede e Maldito Benefício 2, e as peças Carmen, a Grande Pequena Notável 3 e Baixa Terapia 4 .
Dois de Nós marca outros reencontros. Um deles é o de Torloni com o diretor José Possi Neto, seu parceiro teatral há mais de trinta anos. “Dirigi todos os espetáculos dela.” Foi Possi quem a aproximou da dança e trouxe a consciência sobre seu corpo, principal ferramenta de expressão da atriz, segundo ele. Para o diretor, que nos últimos dez anos se dedicou aos espetáculos musicais, o convite veio na hora certa. “Há muito tempo que tenho vontade de trabalhar com o Fagundes. Fiquei muito entusiasmado quando recebi sua mensagem no WhatsApp, mas sempre preciso ler o texto antes.” Leu e gostou. “É um grande exercício de interpretação, vai da comédia ao drama num mergulho profundo nas relações”, define. “O que mais me deixa feliz é ter apresentado o Fagundes ao Possi. É muito bom quando você é ponte para as pessoas. Creio que este é o primeiro de muitos encontros”, alegra-se Torloni.
“A Torloni e o Fagundes já trazem na bagagem uma dinâmica deles. Logo que abre o pano e a peça começa, não há dúvidas de que se trata de um casal, tamanha a afinidade desses dois grandes atores.”
Continua após a publicidadeGustavo Pinheiro, autor
Outro reencontro faz Thiago Fragoso, que por sua vez já havia contracenado com Fagundes na novela Amor à Vida, trabalho que acabou rendendo uma amizade. “Durante as gravações ele começou a promover reuniões na sua casa que juntava toda a classe artística numa troca de ideias”, lembra o ator sobre as reuniões que chegaram a envolver 100 pessoas, de Fernanda Montenegro a Silvio de Abreu. “Ele tem uma importância definitiva para o teatro brasileiro.” Casado há vinte anos com a atriz Mariana Vaz, Fragoso acredita que a peça é importante ao discutir o papel do homem contemporâneo. “Ela fala sobre as mudanças que vivemos, sobre aquele homem que não se sustenta mais na atualidade, que precisa se transformar. Vivi no meio dessa mudança, embora tenha sido sempre um cara mais sensível”, afirma o ator.
Carioca, Fagundes tem com São Paulo uma relação estreita. Aos 7 anos foi diagnosticado com mononucleose. O médico, visando à melhora do menino, recomendou que a família mudasse de ares. Veio parar na capital paulista. “Aqui estudei teatro, primeiro na escola, depois no teatro infantil até me profissionalizar, no Teatro de Arena, então dirigido por Augusto Boal”, lembra ele. Teatro, aliás, fundado pelos pais de Torloni, os atores Monah Delacy e Geraldo Matheus. Depois, fundaria a Companhia Estável de Repertório, que na década de 1990 desenvolveu pesquisas que resultaram em nove espetáculos com elenco fixo.
“Temos feito ensaios abertos ao público, sempre lotados, e é impressionante ver como os espectadores reagem ao entrosamento do Fagundes e da Chris Torloni em cena.” José Possi Neto, diretor
Já Torloni é paulistana, mudou-se na adolescência para o Rio, mas nunca tirou o pé da cidade natal. “Nunca abandonei, venho trabalhar, minhas produções sempre saem daqui. São Paulo tem uma plateia acostumada ao teatro, são espectadores de opinião, ótimos ouvintes. Digo que, se você conseguir fazer uma boa temporada aqui, dificilmente fará uma má turnê.”
Em Dois de Nós, tal público pode esperar uma DR daquelas, com boas doses de humor, entremeadas com momentos que beiram a violência. “Mas, ao mesmo tempo que aponta as questões, tem uma relação de amor muito grande. É uma peça positiva. Creio que sairão embevecidos”, espera Fagundes. “No mínimo apaixonados, com tesão!”, completa Torloni. A julgar pela equipe envolvida e toda a bagagem que trazem juntos, não há dúvidas de que sairão, no mínimo, tocados.
Coordenação de moda: Vanessa Barone
Agradecimento: Osklen
Publicado em VEJA São Paulo de 23 de agosto de 2024, edição nº2907