Anti-herói paulistano: a trajetória pulsante de José Roberto Aguilar
Aos 83 anos, um dos maiores nomes da vanguarda das artes plásticas de São Paulo abre a mostra 'Amazônia Vida', um chamado para a região
Entrar no ateliê do multiartista paulistano Aguilar, 83, é como pisar no universo colorido da sua imaginação. A casa comprida, localizada no Bixiga, é decorada com suas pinturas e esculturas, e seu espaço de trabalho tem o chão revestido por camadas e camadas de tinta pingada e jorrada das suas obras.
No piso, também descansam as pinturas nas quais vem trabalhando ultimamente, guiadas pelo grande tema da sua arte nos últimos tempos: a natureza amazônica. Neste sábado (14), abre a primeira exposição dessa fase, Amazônia Vida, na Dan Galeria Interior, em Votorantim, que ficará em cartaz até 15 de janeiro.
O trajeto dessa mostra começa há cerca de vinte anos, em uma viagem do pintor à vila fluvial de Jamaraquá, no Pará. “A minha companheira, Fernanda Sarmento, é designer. Ela foi para lá fazer cadernos com capa de látex, fui junto e, quando vi aquilo, fiquei impressionado. Comecei a pintar lâminas de látex de seringueira, e assim começou esse grande intercâmbio”, conta Aguilar, que hoje mantém uma residência-ateliê em Alter do Chão, onde passa cerca de três meses por ano.
O encontro com a floresta significou uma verdadeira revolução no seu modo de pensar. “Quando saiu o livro do Bruce Albert e do Davi Kopenawa (A Queda do Céu, lançado em 2010), me abriu uma porta de compreensão da cultura indígena, onde não existe o capital. Você vive com a natureza, e é protetor dela. Assim nós descobrimos que somos muito mais ricos do que pensávamos”, diz.
Ao todo, a mostra reúne 45 telas e uma instalação — incluindo obras de grandes proporções, que passam dos 8 metros de comprimento —, datadas entre 2015 e 2024.
“A floresta, na obra dele, é um choque: tudo o que ele imaginava que era grande é pequeno. O que era árvore é arbusto. O que era rio é riacho. Ele se depara com esse conjunto imenso, e por isso explora tanto o tamanho e o excesso”, explica o pintor e museólogo Fábio Magalhães, 82, curador da exposição.
“Considero o Aguilar um artista essencial da arte contemporânea brasileira. E, antes desse movimento importante de salvar a Amazônia, ele já estava lá, dialogando com o povo ribeirinho e levando arte”, diz Cristina Delanhesi, 59, diretora da Dan Galeria Interior. O espaço, localizado dentro do Bandeiras Centro Empresarial, requer agendamento prévio para visitas.
Para quem cresceu e mora quase a vida inteira nas imediações do Bixiga, no coração da metrópole paulistana, o encontro com a cultura indígena balançou todas as estruturas. “Lá (em Alter do Chão), o tempo é imprevisível. Às vezes o dia demora trinta horas. Quando você chega, traz o tempo de São Paulo consigo, o time is money. Para além da cultura europeia, existem mil outras pulsando com tempos e espaços diferentes. É um banho de cachoeira em que você fica imerso o tempo todo”, define.
Talvez essa revolução interna só possa ser comparada ao dia que, com seu fiel amigo Jorge Mautner, ainda adolescentes no Colégio Dante Alighieri, Aguilar foi introduzido à pintura.
“O pai do padrasto dele pintava, e o Mautner disse um dia que iria lá ver como fazia, e explicar para mim e para o nosso amigo, Arthur de Mello Guimarães. Quando voltou, disse: é só comprar pincel, tinta e terebentina. Quando abri o vidro, foi um cheiro mágico. Foi a invenção da pintura”, relembra.
Após pouca repercussão nos seus primeiros passos artísticos, Aguilar decide entrar no curso de economia da USP. Nas primeiras semanas de aula, porém, tudo mudou. “A grande sorte foi que mandei o meu material para a Bienal (de São Paulo) e fui aprovado. Foi um realismo fantástico. Não fui mais à faculdade e abri o meu primeiro ateliê”, conta.
Pioneiro da nova figuração brasileira, Aguilar começa a traçar um caminho próprio, performático e experimental. Um amigo e apoiador fundamental na sua carreira foi o físico teórico e crítico de arte Mário Schenberg (1914-1990).
“Schenberg defendeu muito ele. Nessa época, outros artistas trabalhavam com action painting (pintura gestual), mas faziam isso na abstração — o Aguilar mistura abstração com figuração, desenhando rostos, incluindo textos”, conta Fábio Magalhães.
Observando as pinturas da exposição Amazônia Vida, o curador comenta sobre a técnica do pintor. “Todas as obras são de uma agilidade extraordinária, muitas vezes produzidas no chão, com o gesto extravasando o tamanho da tela. Ele começou, nos anos 60, com pintura de revólver (spray), que exige essa energia. Você vê, no fundo, as camadas que ele vai erguendo: é uma pintura gestual e altamente elaborada”, afirma.
Com o recrudescimento da ditadura militar, Aguilar vai morar em Londres, em 1970, onde convive com artistas exilados, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Depois, viaja a Nova York, onde descobre a videoarte, se tornando um dos seus pioneiros no Brasil.
Em 1976, volta a São Paulo e se instala mais uma vez no Bixiga, no endereço que ficou conhecido como Casa Azul. Lá, no início dos anos 80, morou Arnaldo Antunes e sua então esposa, Go, que participaram de diversas performances e trabalhos com Aguilar.
Uma delas foi o Concerto para Piano de Cauda com Luvas de Boxe, Cítara e Extintor de Incêndio, na Pinacoteca, em 1980 — foi um embrião da Banda Performática, conjunto musical liderado pelo pintor que estreou em 1981, gravou discos e continua a fazer performances, com diferentes formações. À época, Paulo Miklos também integrou o grupo, antes de formar, com Arnaldo e os outros integrantes, os Titãs.
Nos anos 80, Aguilar passou a ser reconhecido nacional e internacionalmente pelas suas pinturas. Depois, teve uma atuação relevante como gestor cultural — de 1995 a 2002, esteve à frente da Casa das Rosas, na Avenida Paulista, e, entre 2004 e 2007, foi representante do Ministério da Cultura em São Paulo, enquanto Gilberto Gil era ministro.
O pintor mora e trabalha no mesmo endereço desde 1996. Na vizinhança, gosta de comer na padaria e trattoria Basilicata, e, da infância no bairro, lembra bem das árvores e dos sons dos pássaros na Alameda Joaquim Eugênio de Lima. Também sabe de cor (quase) toda a escalação do São Paulo no jogo contra o Ypiranga, em 1949.
A sua alegria e energia invejáveis indicam que uma aposentadoria não está nos planos — “É que nem respirar, enquanto eu puder, vou continuar”, diz.
Para Ulisses Cohn, 61, sócio-diretor da Dan Galeria, o vigor da arte de Aguilar faz dele um nome histórico na mesma medida que contemporâneo. “Essa força da pintura não se encontra em muitos artistas jovens”, diz.
A exposição faz parte de um movimento da galeria de resgatar grandes nomes que andam esquecidos. “Primeiro trouxemos o Ivald Granato (1949-2016), agora o Aguilar e o Cabral, artistas consagrados que, durante muito tempo, foram arredios a trabalhar com galeria — eles colaboravam em grupo e eram muito combativos”, diz.
Além da mostra, está sendo feito todo um trabalho museológico, com catalogação, limpeza e restauro do acervo do pintor.
Quando detalha as descobertas que fez no Norte, Aguilar fala muito sobre a percepção do tempo, e a arte de fazer ele parar. “Está difícil essa questão da Amazônia, com a natureza pegando fogo. Eu não queria ter 5 anos agora. Está tudo cada vez mais perecível, por isso que você tem que curtir o aqui e o agora, pelo menos parar o tempo. De vez em quando, você consegue”, diz, como quem dá um conselho.
Talvez isso não seja um poder de super-herói, afinal. Parece que, cada vez mais, Aguilar descobre em si próprio aquilo que descreve no manifesto e na letra da música-título do disco Anti Herói (2007), da Banda Performática: “Sou apenas o anti-herói, o homem comum, tranquilo no mundo, curtindo cada momento, saboreando cada segundo e livre como o vento”. ■
Publicado em VEJA São Paulo de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910