Trânsito III: “Se você não aprendeu assim, por que é assim que você faz?”.
Estamos na Semana Nacional do Trânsito, que começou no último dia 18 e termina no próximo dia 25. A Semana, organizada pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), alerta a respeito da violência no trânsito com foco no pedestre. A seguradora que administra o seguro obrigatório dos veículos automotores (DPVAT) produziu um vídeo muito interessante como […]
Estamos na Semana Nacional do Trânsito, que começou no último dia 18 e termina no próximo dia 25. A Semana, organizada pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), alerta a respeito da violência no trânsito com foco no pedestre. A seguradora que administra o seguro obrigatório dos veículos automotores (DPVAT) produziu um vídeo muito interessante como parte das atividades ligadas à Semana, já que as indenizações pagas aos pedestres representam 1/5 de todo o volume pago.
O vídeo da campanha traz uma situação inusitada na qual o instrutor ensina ao aluno uma série de comportamentos inadequados no trânsito, como não usar o cinto de segurança, buzinar de maneira agressiva, desrespeitar a preferência do pedestre, estacionar em vaga exclusiva para portadores de deficiência física e outros exemplos. A situação foi uma pegadinha e, portanto, as cenas foram gravadas em aulas efetivas com alunos reais pleiteando a carteira de habilitação. Aqui está o vídeo:
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=8DVlBn-1-s0?feature=oembed&w=500&h=281%5D
A campanha publicitária provoca uma discussão bastante relevante em relação ao comportamento de dirigir. Parte dos comportamentos que aprendemos se dá por observação e por assimilação de instruções recebidas. É exatamente o caso da aprendizagem de como dirigir. Aprende-se com a repetição do comportamento (treino) mas também com as instruções e com os modelos de comportamento dados pelo instrutor. E essa é a questão aguda e certeira que a campanha propõe aos motoristas: Se você não aprendeu assim, por que é assim que você faz?
Do ponto de vista da análise do comportamento, podemos arriscar uma resposta a essa pergunta. Antes é importante saber que todo comportamento voluntário só se repete ao longo do tempo porque a consequência produzida é agradável de algum modo para quem se comporta. Dizemos que o comportamento foi reforçado. No caso das aulas de autoescola o comportamento do aluno está sob controle da aprovação no exame de direção. Depois de aprovado, ele recebe a carteira de habilitação. Esta é a parte agradável para o aluno. Então podemos dizer que a obtenção da carteira reforça todos os comportamentos aprendidos na autoescola. Mas, se a carteira é o reforçador, temos um nó. Sim… porque este reforçador não será mais liberado, ao menos não nesta contingência na qual o aluno tem de atender a vários requisitos (aulas teóricas e práticas, investimento de uma quantia significativa de dinheiro). Quer dizer, o reforço (habilitação) ao qual os comportamentos aprendidos na autoescola estão vinculados não será mais liberado. Neste caso, nosso sistema nervoso entende que não há sentido em repetir os mesmos comportamentos. Chamamos esta situação de contingência de extinção.
Acontece que parte dos comportamentos aprendidos passa a se vincular a outros reforçadores (saber dirigir = poder sair com os amigos, viajar, evitar ônibus lotados, poder fazer compras no supermercado etc). Até aqui tudo bem, uma vez que os mesmos bons comportamentos seriam reforçados pelas consequências agradáveis agora mencionadas. Só que parte deles (normalmente o seguir regras) representa um atraso no alcance do reforço. Por exemplo, parar no sinal vermelho pode atrasar o deslocamento, esperar um pedestre atravessar na faixa de segurança também. Não estacionar na vaga exclusiva para idosos pode exigir mais tempo até achar a vaga correta. Essa combinação acaba fazendo com que muitos motoristas aprendam, aos poucos, a tirar vantagem do uso do carro em detrimento de outras pessoas (pedestres, ciclistas, motociclistas, outros motoristas).
Já discutimos anteriormente como nossa cultura aristocrática nos torna agressivos no trânsito. Pois esta mesma cultura aristocrática nos ajuda a abrir mão das regras aprendidas na autoescola. Interessante que um motorista novato também aprende observando modelos diferentes de como dirigir no trânsito das cidades. Ele percebe que o motorista “esperto” obtém vantagens sobre motoristas “ingênuos”. E estamos falando de vantagens falsas porque não representam um ganho significativo para quem delas se beneficia. O problema é que representam uma perda agora sim significativa para quem é prejudicado. No fim das contas, todos saem prejudicados uma vez que, quanto menos seguimos as regras, menos o trânsito funciona e, pior, mais gente se machuca e morre nele.
Uma possível alternativa pontual para ajudar a transformar esta realidade seria modificar o modo de ensinar a dirigir no Brasil, reforçando mais e mais a ideia de que seguir as regras faz bem para si e todos saem ganhando, ou seja, as autoescolas podem buscar formas mais criativas de ensinar a dirigir, procurando desvincular a aprendizagem da simples obtenção da carteira de habilitação e vinculando cada vez mais aos ganhos individuais que sejam coerentes com os ganhos coletivos. Os macetes que os instrutores ensinam aos alunos são práticos para “passar na prova” mas ajudam pouco a formar um bom motorista. É só lembrar de como se aprende a fazer baliza na autoescola e ficará claro a respeito de que estamos falando aqui.
Mas não podemos responsabilizar simplesmente as autoescolas pelos comportamentos inadequados dos motoristas. Cada um tem um papel importante. Sabemos que o trânsito é mal planejado em São Paulo (e no Brasil como um todo) mas cada motorista precisa se colocar como protagonista da mudança enquanto dirige. Vale a pena aprender a administrar o estresse que é compartilhado com todos os demais que se deslocam pela cidade. Vale a pena colaborar com a sua parte para um trânsito melhor. Vale a pena respeitar o outro. Vale a pena dar a vez. Vale a pena ir de bicicleta. Vale a pena ajudar São Paulo (e o Brasil) a ter um trânsito melhor. Vale a pena colaborar para que não se mate tanto no trânsito