O pior dos casos de crianças esquecidas no carro: pode acontecer com (quase) qualquer um
Nas últimas semanas fomos surpreendidos por alguns casos de crianças esquecidas dentro dos automóveis de seus pais. Algumas delas morreram. Esse tipo de tragédia sempre choca a sociedade e provoca revolta: que monstro é esse que está tão preocupado com os próprios problemas que simplesmente ignora a presença da criança dentro do carro? A primeira […]
Nas últimas semanas fomos surpreendidos por alguns casos de crianças esquecidas dentro dos automóveis de seus pais. Algumas delas morreram. Esse tipo de tragédia sempre choca a sociedade e provoca revolta: que monstro é esse que está tão preocupado com os próprios problemas que simplesmente ignora a presença da criança dentro do carro? A primeira conclusão cruel: não, não dá para dizer que foi por acaso. A segunda, e mais terrível: poderia acontecer com (quase) qualquer um.
Alguns detalhes científicos. Como as informações do ambiente chegam em grande volume no sistema nervoso, seria impossível processar todas elas simultaneamente. Assim, a evolução o dotou com a capacidade de selecionar as informações mais relevantes a cada instante. Quando entramos num ambiente com um ventilador ligado podemos identificar o som que o aparelho produz mas, depois de algum tempo, aquela informação perde a relevância para o sistema nervoso e deixamos de ouvir o som. Ainda bem. Imaginem quão insuportável seria viver de forma diferente.
O mesmo ocorre com os comportamentos, cuja execução depende de processos nervosos. O batimento cardíaco ou a respiração, por exemplo, não dependem em nada da consciência. Pegar um objeto sobre a mesa ou caminhar dependem – mas nem por isso são totalmente conscientes. Um exemplo clássico é mudar a marcha do carro – algo muito “pensado” quando você está aprendendo, e “automático” mais tarde.
Isso facilita a vida, claro, mas tem seus efeitos colaterais. Um deles é o fato de que negligenciamos informações importantes enquanto estamos nos comportando de forma automática. Hoje mesmo um paciente meu se atrasou porque acabou indo na direção de seu trabalho e não do meu consultório. Isso aconteceu porque ele estava de folga e veio para a terapia em horário diferente do habitual.
Pais que esqueceram os filhos dentro do carro cometem essa negligência em situações nas quais geralmente saíram da rotina de forma parcial. Aí se mistura a ação rotineira de dirigir ao novo elemento, como fazer uma compra. O motorista assume o volante e o cérebro dispara os processos automáticos relacionados ao dirigir até o destino habitual. Não tem a ver com não amar o filho – você pode estar pensando inclusive na consulta médica da criança, na mensalidade da escola etc.
O risco, porém, se torna muito maior nesses tempos em que o trabalho e outros compromissos nos exigem estar sempre alerta. Os pais passam tão pouco tempo com os filhos que há sempre uma sensação de que eles devem estar agora na escolinha ou com a babá.
Pronto… todos os ingredientes para a tragédia estão postos. Basta um dia de maior cansaço ou estresse para que a criança seja esquecida no banco traseiro do carro. Com ela é esquecido também o sentido da vida.
Uma dica comportamental pragmática aos pais é sempre amarrar uma cordinha na cadeirinha com um sininho na outra ponta que deve ser mantido sobre o colo enquanto dirige. Ou ainda, usar uma ventosa para prender um espelho no para-brisa voltado para a criança no banco de trás para ver se está tudo bem. Mas a dica primordial é sempre a mesma: uma rotina saudável com tempo livre suficiente para compartilhar com a família. Não se trata aqui só da quantidade de horas exclusivas para brincar com os filhos, mas da qualidade de sua presença, sem, por exemplo, distrair-se dos pequenos no shopping enquanto escreve ao celular ou terceirizar totalmente para a babá os cuidados que devem ser seus. Uma tragédia como a das notícias recentes pode acontecer nas melhores famílias, mas o risco é menor entre pais mais atentos.