O condomínio que teve a coragem de derrubar muros e catracas para revelar praça com paisagismo e pisos projetados por Burle Marx
Formado por quatro torres com catorze andares cada um, o espaço no Itaim Bibi optou por estimular a circulação de pessoas
Uma praça com paisagismo e pisos projetados por Burle Marx hibernava em pleno Itaim. Com 15 000 metros quadrados, maior que o terreno do Conjunto Nacional, na Paulista, as 76 espécies de planta e os mosaicos do gênio paisagista se escondiam atrás de muros altos, catracas e guaritas variadas. Em um movimento que contrasta com retrocessos reinantes em tantas áreas, o Condomínio São Luiz derrubou muros, retirou catracas e está transformando antigas recepções em negócios que deixarão o complexo mais convidativo para quem quiser um atalho sob boa arquitetura.
A abertura para a cidade segue os empreendimentos realmente modernos da última década, de Nova York a Pequim. Segurança é mais facilmente obtida com gente circulando nos mais diversos horários do que sob muros altos, calçadas escuras e vazias, e corporativos que se esvaziam às 18 horas e não são frequentados por mais ninguém.
Com 5 400 funcionários em tempos normais (menos de 1 500 diários durante a pandemia), o São Luiz é formado por quatro torres com catorze andares cada, em projeto desenvolvido por Marcello Fragelli entre 1976 e 1984. O arquiteto, que chefiava o departamento de arquitetura do então gigante Promon, já tinha assinado várias estações de metrô da pioneira Linha Azul, como Liberdade, São Bento, Armênia e Jabaquara.
Carioca que começou no escritório dos irmãos Roberto no Rio, e tinha se mudado em 1961 para a Pauliceia, Fragelli fez uma rara obra brutalista, com concreto aparente, conciliada com cores, muito verde e abertura para a cidade (muitos caixotões do gênero só se preocupam com os interiores, de rampas a vãos ou outros feitos da engenharia, sem pensar no entorno).
Mas, quando o São Luiz foi inaugurado em 1986, Fragelli já não estava mais na empresa, os muros altos tinham circundado todo o projeto. Tudo o que veio depois mostrou o paradoxo das regiões mais ricas da cidade: prédios residenciais de construção barata e kitsch (alguns com mansardas, pela neve que despenca em Piratininga), e corporativos espelhados e abrasivos, tão “ecologicamente corretos” com 24 horas de iluminação e ar-condicionado ligados.
O concreto aparente, o vermelho goiaba da fachada e mesmo o verde de Burle Marx transformaram o conjunto em uma relíquia por ali. A síndica Catherine Debbaudt optou pela qualidade e por trazer o condomínio para o século XXI, sem sacrificar o que tem de especial (ao contrário do que acontece em outras paragens, lideradas por gente sem repertório ou cafoninha mesmo, como no Cetenco Plaza, da Paulista).
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O escritório Perkins + Will foi convocado a modernizar o conjunto. O arquiteto Fernando Vidal explica como a recepção saiu da entrada para o saguão dos elevadores, deixando espaço para um futuro café na boca da rua. Adeus, muros. Um dos vários estacionamentos improvisados na entrada desapareceu para virar uma nova pracinha, entregue para o escritório Burle Marx executar. Da iluminação a questões de segurança, os arquitetos foram cuidadosos. Não foi fácil: pela legislação brasileira, algumas mudanças em condomínios dependem de 100% dos votos, e sempre há os que não querem investir nem transformar, ou os que defendem a manutenção das cidadelas amuralhadas. Para esses, vilas no interior são mais apropriadas.
O projeto vai além: propôs um pergolado ondulado para a entrada e terraços verdes em uma empena cega, que certamente causarão gritaria no conservadoríssimo establishment arquitetônico local. Uma sombrinha na entrada fará bem. O antigo teatro, fechado há anos, dará lugar, no fim deste mês, ao empório com hortifrútis Oba. Outra gritaria previsível, especialmente de gente que frequentava teatros uma vez por ano antes da pandemia. O hortifrúti pode atrair públicos em horários mais elásticos que os dos escritórios.
Mas um único prédio, por maior que seja, não faz verão. A mudança no São Luiz bem que poderia marcar o início da virada de uma das áreas mais hostis ao pedestre nas redondezas. Onde ir de um ponto A a um ponto B de menos de 300 metros é um suplício. O terreno vizinho e abandonado da Caixa Econômica e do INSS poderia ter algum uso. Os túneis da Juscelino poderiam ganhar uma cobertura — mais planejada e sutil que a da Praça Roosevelt, claro. As duas torres da Camargo Corrêa (dessas que jamais atraem uma pessoa que não trabalhe ali) também poderiam aderir ao século XXI e tirar a carreira de obstáculos ao pedestre, inspirando-se no vizinho mais experiente, o São Luiz. E aquele pequeno pedacinho do circuito Vila Olímpia-Itaim poderia ganhar muito em circulação e segurança, até se parecer com uma cidade-cidade, e não com um perdido subúrbio americano.
Em tempos de condomínios fechados com nomes nouveau riche e shoppings-caixotões em plena Haddock Lobo, com paredão para a rua e as esquinas, seria uma rara vitória da generosidade urbana para uma cidade tão maltratada.
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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de março de 2021, edição nº 2728