Antigo Asilo dos Expostos segue vazio desde 1996 no Pacaembu
Por pressão da vizinhança, seus usos por colégio ou faculdade, por exemplo, foram reprimidos, o imóvel foi tombado e não é utilizado
Nem a maior pandemia em um século alterou a modorra nesta vasta propriedade da Faculdade de Medicina da USP. Enquanto os estádios do Pacaembu e do Ibirapuera e até o Anhembi, com goteiras e tudo, tiveram de abrigar hospitais de campanha, o antigo Asilo dos Expostos continuou sem uso. Tem apenas seis funcionários, um arquivo morto e nada mais.
Aberto em 1902, muito antes do loteamento que originou o Pacaembu, serviu como orfanato para 600 crianças de até 6 anos de idade, com o nome Educandário Sampaio Viana, entre os anos 1940 e 1990. No fim dos anos 1970, chegou a ser dirigido pelo padre Julio Lancelotti. Na última fase, porém, sob a administração da antiga Febem, foi reduzindo o número de internos. Desde os anos 1980, por pressão da vizinhança, seus usos foram sendo reprimidos. Diversas reportagens insinuavam que os grupos Maksoud e Mufarrej disputavam o espaço para criar um hotel ali. Foi só nesse momento, como sói acontecer, que a vizinhança subitamente achou que o prédio tinha valor histórico e passou a exigir o tombamento.
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O orfanato foi desativado em 1996. De fato, muita gente na gestão do então governador Mario Covas defendia a venda da valorizada propriedade de 46 000 metros quadrados — o equivalente a três quarteirões do Conjunto Nacional, na Paulista.
Em 1997, o Colégio Rio Branco ofereceu o equivalente a 120 milhões de reais, em valores de hoje, para comprar e restaurar o imóvel e transformá-lo em sua nova sede. Os vizinhos se opuseram. Reclamavam de que uma escola ali “traria trânsito” (essa anormalidade a que os paulistanos mortais já se habituaram). Também pediam que o local se transformasse em um museu — outro cacoete da elite paulistana quando quer congelar algum imóvel nos seus domínios. Costuma funcionar: mesmo sem ter recursos para criar parques, escolas ou teatros na periferia miserável, o poder público normalmente atua como mordomo atencioso quando um bairro já privilegiado exige um novo centro cultural. É uma redistribuição de impostos às avessas, quando as áreas mais bem servidas por infraestrutura pública recebem mais investimentos governamentais, até para locais que serão pouco frequentados no futuro (a criação do Museu Brasileiro da Escultura, no Jardim Europa, deu-se assim).
Voltando ao educandário ocioso, faculdades também se interessaram pelo complexo, mas foram afugentadas pela briga da influente comunidade do Pacaembu (que, nos mesmos anos, barrou a construção de um prédio da Faap). O tombamento saiu logo depois das ofertas (que surpresa!), em 1998. Por um curto período, em 2002, a Casa Cor usou o espaço e restaurou o local. Ainda assim, enfrentou muitas críticas. Até uma pequena creche para filhos de funcionários da Faculdade de Medicina teve de ser fechada — as crianças faziam barulho.
Trata-se de uma privatização em que o poder público jamais recebeu o dinheiro por uma propriedade que, na prática, virou um quintal privado — e vazio — dos moradores do Pacaembu. Como também aconteceu com o estádio — proibido de receber shows e com poucos jogos nos últimos anos — e com a Avenida Pacaembu, que tem vetada a abertura de restaurantes ou bares (acabou sendo reduzida a show-room de lojas de colchão), os moradores conseguiram esvaziar uma área central, servida pela Estação Clínicas do metrô, com o poder público obedecendo às suas vontades. Raridade na Pauliceia. Quem chegou depois inutiliza o que já existia. Preservar, de fato, requer uso.
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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de julho de 2020, edição nº 2695.