Esther Góes fala de arte e política cultural: “se nós precisamos de mais e melhores médicos, precisamos também de mais e melhores espetáculos para a população”
Austríaca radicada na Alemanha, a atriz Helene Weigel (1900-1971) protagonizou “Mãe Coragem” e “Os Fuzis da Senhora Carrar”. Casada com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, ela foi fundamental na criação da companhia Berliner Ensemble, em 1949. Há sete anos, a atriz paulistana Esther Góes abraçou a biografia da personagem e conta sua interessante história no espetáculo “Determinadas Pessoas […]
Austríaca radicada na Alemanha, a atriz Helene Weigel (1900-1971) protagonizou “Mãe Coragem” e “Os Fuzis da Senhora Carrar”. Casada com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, ela foi fundamental na criação da companhia Berliner Ensemble, em 1949. Há sete anos, a atriz paulistana Esther Góes abraçou a biografia da personagem e conta sua interessante história no espetáculo “Determinadas Pessoas — Weigel”, que volta no dia 9 para uma curta temporada no Teatro Ruth Escobar, na Bela Vista. Dirigida por seu filho, Ariel Borghi, também responsável pela dramaturgia, Esther acaba de realizar uma série de apresentações nos CEUs (Centros Educacionais Unificados) e falou um pouco com o blog.
Esther, você é de uma geração que abraçou o teatro ao extremo. E acho que isso a aproxima de Helene Weigel. Você montou peças de Brecht, viveu anos com um homem de teatro, que é o Renato Borghi, lutou por causas políticas. Escolheu interpretar Weigel porque encontra conexões – com devidas proporções – entre a trajetória dela e a sua?
Weigel disse que as mais importantes escolhas são feitas em plena juventude, dentro de um relativo caos, sem nenhuma consciência dos efeitos e, no entanto, são as escolhas certas. Eu me apaixonei pelas artes cênicas e por um jeito de viver livre aos quinze anos. Logo vieram os trabalhos com Ademar Guerra, o Teatro Oficina, o Renato Borghi, o contato com os autores que me influenciaram, como Brecht, Shakespeare, Virginia Woolf, Sófocles, Ésquilo, Pinter e Plínio Marcos. Com isso, a entrega aos processos de criação. Quanto mais autoria, mais liberdade. Minha identificação com Weigel ocorre em ambos os terrenos: o da vida e o da obra. Na obra, a plena entrega a um trabalho que envolvia a todos, uma sociedade inteira. Sua trajetória como atriz revela o desejo de realizar uma utopia, mas os pés estão sempre no chão. Não concede mais que o necessário. É firme e fiel aos seus objetivos.
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E na vida pessoal?
Como mulher, ela é conhecida mais pelo silêncio. Seu compromisso com a liberdade individual, que compreendia a emoção, a sexualidade, a participação social, ocorreu muito cedo. A prática da liberdade, entretanto, na hora de assumir o resultado da concretização dos nossos desejos, é bem mais complicada. A relação com Brecht, mantida pela vida afora, sempre esteve no limite de não existir mais. Alguns mistérios só eles conheciam, quer dizer, mais ela do que ele, e os deixaram unidos frente às questões fundamentais da arte, da política, dos dois filhos, do Berliner Ensemble. Todas as questões emocionais a ela ligadas foram silenciadas, como um tesouro bem guardado. O que sentia Wiegel diante das inúmeras amantes de Brecht? O que de fato fez de sua própria vida íntima? Era feliz? Nem sua principal biógrafa, Sabine Kebir, pôde ir muito além de alguns testemunhos. Mas o de Ruth Berlau, uma das amantes de Brecht, atesta que somente em cena era possível lê-la, lugar onde se permitia deixar aflorar todas as emoções, ali acontecia sua verdadeira vida. Quando desenho mentalmente seu perfil, percebo que ela foi e é a mais bela referência para os atores e para mim mesma que eu posso proporcionar. Mulher admirável, disposta a silenciar sua carreira durante quinze anos para prover a sobrevivência de seu grupo de amigos e familiares, no intento de antagonizar-se ao nazismo e defender o socialismo. Brecht precisava escrever! Sua voz precisava ser ouvida.
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Como atriz, você falou muito dos anseios de sua geração, desafiando política e comportamento. Ainda existe espaço hoje para esse teatro de mensagem ou a coisa ficou tão esvaziada e superficial que desanimou também os artistas e produtores?
Todas as lutas da minha geração foram tentativas de resposta ao exercício da liberdade e da justiça. Pagamos nosso preço, mas estou certa de que não é possível realizar a arte sem vida concreta. Não posso imaginar um teatro alheio ao que nos cerca, unicamente interessado no entretenimento. Só de pensar isso já me entedia. Há um sentimento de urgência na sociedade, precisamos de ideias para compreender o mundo. O teatro é sempre um campo de ideias. Bons autores não fogem dessa verdade, apenas a abraçam. Por isso são bons. A mensagem do teatro deve ser a própria discussão da realidade humana. Shakespeare utilizou a dialética ao manter o rigor da descrição dos fatos como são, permitindo ao espectador mergulhar na dúvida e nas próprias versões da realidade, buscando a dúvida ao invés de ignorá-la. Esse teatro não tem fim.
Renato Borghi e você estiveram à frente de uma companhia nos anos 70 que corria o Brasil, com produções montadas e desmontadas a cada nova praça. Hoje, todo mundo fala que ficou muito difícil viajar, que se não existe um patrocínio é quase impossível encenar um espetáculo. O que mudou tanto no conceito de fazer teatro? Vocês tinham mais garra e anseios artísticos? Talvez os jovens estejam mais preocupados com o retorno financeiro?
O mais incrível é que quando não tínhamos as leis de incentivo e viajávamos o País inteiro. Companhias aéreas nos patrocinavam passagens, e hotéis ofereciam estadias para atores e técnicos em troca de participação na divulgação do espetáculo. Os produtores locais se empenhavam em divulgar a obra para ganhar percentuais do que fosse arrecadado. Não há mais produtores locais dispostos a esse trabalho, todos contam com patrocínios através das leis de incentivo para cobrir previamente os custos e garantir o resultado. As bilheterias não são mais o objetivo financeiro, já que não se pretende correr o risco de ganhar menos. Mesmo que você queira, se não estiver garantido pelo patrocínio, não te deixam mais viajar. Há algo de errado nisso tudo. As leis de incentivo protegem o grande entretenimento. Os possíveis patrocinadores preferem esse tipo de espetáculo para vender seus produtos. Nessa aliança, em que o resultado vende produtos e não obra cultural, perde a obra artística, que não pode nem deve ser criada de olho no retorno financeiro, embora dependa dele para sobreviver. As leis de incentivo precisam decidir a quem servem, por que existem e foram criadas. Precisamos de política cultural que mereça esse nome.
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Você fez uma temporada itinerante de “Determinadas Pessoas – Wiegel” pelos CEUs , da Prefeitura. Você se sente contagiada de que forma ao dialogar com plateias que fogem do perfil convencional dos teatros classe média, digamos assim, de São Paulo?
Ariel Borghi e eu temos uma companhia e produzimos “Determinadas Pessoas – Wiegel”. Através do Prêmio Zé Renato, da Prefeitura Municipal de São Paulo, obtivemos recursos para uma itinerância e escolhemos doze CEUs, uma universidade e seis apresentações em sala de espetáculo, no caso, agora, o Ruth Escobar. Tivemos plateias sempre cheias e bastante heterogêneas. Esse perfil é em parte educacional, já que os CEUs atraem as escolas e instituições da região e, em outra parte, um público espontâneo. Muitos já desenvolveram o gosto e a atitude diante da obra, outros ainda demonstram a surpresa de uma quase primeira vez. Fizemos debates após cada espetáculo, sempre com perguntas e comentários pertinentes. E ouvimos de todos a expressão da carência da população quanto à oferta de espetáculos. Grande ilusão pensar que a periferia não será consumidora de espetáculos mais complexos e de nível intelectual mais exigente.
Fica contagiada de que forma ao dialogar com plateias que fogem do perfil convencional dos teatros?
Se nós precisamos de mais e melhores médicos, precisamos também de mais e melhores espetáculos para a população. É bem claro que a 20 minutos de qualquer bonito bairro de classe média, alta ou não, existe um lugar onde falta praticamente tudo e onde um centro de educação pode fazer diferença para todas as idades. Conhecemos finalmente a verdadeira cidade de São Paulo, e o perfil do paulistano não é nada diferente do real perfil do brasileiro comum, carente, muito carente de condições para viver dignamente.
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Já são sete anos de “Determinadas Pessoas – Wiegel”. O que muda para você como atriz e o que melhora no conjunto da obra?
Ariel e eu temos apresentado a Weigel intercalando-a com outros trabalhos, como “A Coleção”, de Harold Pinter, e “Coriolano”, de Shakespeare. Diante de cada temporada da Weigel, atualizamos o espetáculo com a reflexão do momento em que ela se insere. O Brasil e o mundo mudaram desde abril de 2008, quando estreamos. Questões sociais muito mais agudas e cruciais se apresentaram. O Brasil evidenciou o resultado das práticas de corrupção e o abandono da população, o quadro de violência e insegurança demonstrou que já nem precisa mais ser dito. A vivência da personagem foi se aprofundando para nós. O que antes era possível apenas descrever já pode hoje ser integrado à nossa própria pele. Sobretudo a euforia juvenil de alguém que achava ser possível mudar o mundo em 1922 e, nos anos 60, já se conformava em publicar a obra de Brecht sem cortes em Berlim Ocidental como uma imensa vitória diante do socialismo real da RDA (República Democrática Alemã).
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