Papo Vejinha: concertos on-line engatinham
Claudia Toni, especialista em políticas públicas para a cultura, analisa as perspectivas da música clássica durante a pandemia
O que significa a atual interrupção das atividades para a música clássica nacional? Na Filarmônica de Nova York houve corte de salários e os músicos cederam direitos de imagem para transmissões dos concertos durante este momento de interrupção. Aqui, já vínhamos de um empobrecimento das temporadas em razão de cortes de orçamento consecutivos. Hoje o número de institucionalizados, aqueles músicos com salários garantidos, é pequeno. A preocupação é com os artistas freelancers. É aquele ditado: quem não é visto não é lembrado.
O streaming se torna a melhor ferramenta para ser visto? Sim. Estando nessa plataforma, de maneira gratuita, a orquestra prova sua relevância. Ela devolve à sociedade o que recebeu de verba. Isso é importante para sua sobrevivência, até por assumir um papel que não se imaginava. As instituições podem se reposicionar e pensar em novos produtos para oferecer, com valores acessíveis, para chegar à casa das pessoas. Fico curiosa para saber se terão público novo.
Como estão essas iniciativas no Brasil? Tímidas, com transmissões com hora marcada, por exemplo. Há poucos concertos completos e oferecidos de forma acessível. Nenhuma das instituições construiu ao longo dos anos um acervo robusto e disponível permanentemente. A TV Cultura antigamente tinha uma política agressiva de registrar os concertos, mas isso minguou. Não temos conteúdo suficiente para criar canais como os de fora.
Demoramos para entrar nesse mercado, foi isso? Nem começamos a entrar nele. A notícia de que a Filarmônica de Minas Gerais comprou equipamentos para gravações já é interessante. Ela lidera algumas transformações, diferentemente das orquestras paulistas. Percebeu que sua relevância se estende à medida que mostra quanto é conhecida e reconhecida como prestadora de serviços essenciais para a sociedade. Fazer boa música é um serviço essencial. Ainda é um movimento pequeno, mas o fato de a filarmônica ter investido é para ser aplaudido por horas.
Pode ser uma saída autossuficiente? Nunca será. Nenhuma orquestra, como nenhum museu no mundo, se paga com dinheiro de bilheteria. É preciso recurso suplementar ao valor arrecadado com o ingresso. Eu não estou preocupada com a sustentabilidade exclusiva, porque é dever do Estado bancar, assim como banca o Sistema Único de Saúde e a educação. O que importa é: se a instituição é mantida com recurso público, deve ser relevante e se ocupar da maioria, que agora não tem nada. É claro que precisa ser o mais sustentável possível, para que não se pague por algo que não funciona.
O streaming pode ajudar na educação? Pode ajudar muito desde que o acesso aos equipamentos seja facilitado. Muitos jovens têm esse material, banda larga de qualidade, computador. Outros não têm nada. Vamos bolar um projeto para ser usado no celular? É preciso fornecer o aparelho ao aluno. Quem pagaria a conta? Ouvi uma história de um garoto de um projeto social que aprendeu a tocar violino no YouTube, de graça, com uma chinesa. Mas ele conseguiu esse acesso. Nem todas as casas têm internet.
Quais são as vantagens de poder acompanhar concertos on-line? Pessoalmente, estou encantada com o novo maestro da Filarmônica de Berlim, Kirill Petrenko. O jeito como ele rege, as interpretações, a comunicação que tem com a orquestra. E eu não teria a oportunidade de ver esses detalhes se estivesse presa na cadeira da sala de espetáculo tradicional.
E as desvantagens? A qualidade do som e a acessibilidade, ainda restrita a quem tem computador, internet e smart TV.
É uma retomada do costume perdido de ver ou ouvir concertos na TV e em rádios? A rádio ficou chata e velha. Se mudar a programação, os senhores que a ouvem desde mocinhos vão reclamar. Assim, perderam-se novos adeptos, é claro. Também não há na TV aberta a dedicação a fazer produtos de qualidade, sofisticados, como se vê na TV fechada. O que é um podcast senão uma rádio inteligente? Ninguém experimenta a novidade. As pessoas estão conformadas, não arriscam e têm medo de perder um único centavo. Existe um comodismo intelectual, de não querer buscar o que há lá fora. Continuam repetindo a mesma fórmula desde os anos 50, até as orquestras não mudam sua maneira de se apresentar.
O que mudará quando for viável o retorno das atividades nas salas de concertos? Os idosos, que estão no grupo de risco, vão passar por um período de resguardo. E eles representam até 80% da plateia das salas de concerto.O desafio é criar vínculo com outros públicos. Essa reinvenção, ou a preocupação com a reinvenção, já acontece lá fora. Não sabemos se vai dar certo. As orquestras estão preocupadas em renovar repertório, em criar encontros, clubes, conversas com maestro para explicar uma obra. Aqui, entrega-se um programa, num texto raso, formal, por desencargo de consciência. É preciso dessacralizar as orquestras para que elas se conectem com o novo público que está disponível.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de abril de 2020, edição nº 2682.