Nelson Freire: “Durmo mal antes e depois do concerto”
Nelson Freire conversou com a Veja São Paulo.com. Ele se apresenta em Ilhabela no dia 29 de dezembro
Virtuoso no piano, o mineiro Nelson Freire está acostumado a lotar plateias pelo mundo. Depois de duas apresentações na Sala São Paulo, ele encerra o ano com uma performance no Complexo Cultural Baía dos Vermelhos, espaço recém-inaugurado em meio à Mata Atlântica em Ilhabela, no dia 29 de dezembro. Está é uma das raras oportunidades de vê-lo se apresentar. No programa, ele executa obras de Bach, Chopin, Villa-Lobos e Beethoven. VEJA SÃO PAULO.COM conversou com ele nesta semana. Confira.
VEJA SÃO PAULO.COM: Hoje, como se dá a construção do programa de uma de suas apresentações?
Nelson Freire: Trata-se de uma mistura de experiência e intuição. É necessário haver uma coerência musical, timing e variedade. Essencial você se colocar no lugar do público e só tocar obras que te dizem alguma coisa que você possa transmitir.
VSP: Atualmente, vemos poucos artistas brasileiros com uma carreira de destaque como a sua. Por que isso acontece?
NF: Infelizmente estamos já há algumas décadas vivendo um declínio cultural no nosso país. É muito difícil para um jovem brasileiro encontrar estímulo para ir em frente. É uma pena, pois um povo se impõe pela cultura e a música é o grande veículo de harmonia, amor e entendimento entre as pessoas. Os verdadeiros valores têm sido menosprezados ou esquecidos. Recentemente estive na China e fiquei maravilhado com o respeito e admiração que eles têm pelo artista. Aliás, as três profissões mais respeitadas são do professor, do médico e do artista. Nos concertos, teatros fantásticos, salas lotadas e um público entusiasta onde grande parte são crianças!
VSP: Em uma reportagem do jornal O Globo, de 2014, você comenta que gravar um CD seria um registro para as próximas gerações. Preocupa-se com isso?
NF: Sim, acho importante registrar o que fazemos. Não deixa de ser uma informação para gerações futuras. Eu aprendi muito ouvindo os grandes pianistas do passado graças às gravações.
VSP: Nesta mesma entrevista, você diz que ainda tem muito a progredir. O que mais sente vontade de fazer?
NF: A arte é infinita. Graças a Deus. Sempre há algo que pode ser melhorado, entendido de outra forma. Desafios não faltam. Uns são superados, outros a gente dá um jeito e vamos sempre aprendendo. É isso. Um eterno aprendizado.
VSP: Como descreveria uma semana de ensaio?
NF: Durmo mal antes e depois dos concertos. Por isso gosto de ter uns intervalos entre apresentações. Nem sempre é possível.
VSP: No documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles, em um trecho difícil, na peça Concerto nº2 em si bemol maior, opus 83, de Brahms, você aparece um pouco mais tenso ao ensaiar esta peça. Depois, comenta sobre o nervosismo de errar e do fato de Rubinstein não ter tocado o trecho. Aainda se preocupa com certos trechos?
NF: As dificuldades muitas vezes são psicológicas. A gente ouve dizer o tempo todo que uma coisa é difícil e acaba achando. Quando se percebe isso, você vê a dificuldade de outra forma e ela deixa de existir. Pensar no sentido musical do trecho ajuda muito. Esse, do concerto de Brahms, deixou de ser aquele espinho. Porque não quero provar nada com ele, deixou de ser uma exibição.
VSP: Prefere se apresentar sozinho ou com uma orquestra ao redor? E por quê?
NF: Gosto de ambos. São coisas diferentes. Com orquestra é mais “colorido”. Tem os ensaios, aquele barulhinho da orquestra afinando antes de a gente entrar no palco, a cumplicidade com o regente (algumas vezes com alguns regentes) e estar ali rodeado de um monte de gente fazendo música com você. Recital são outros 500. Solitário, a responsabilidade é maior. Você toca durante muito mais tempo e ali você só conta com você, o piano e a música! Mas quando tudo funciona e o público reage é muito gratificante. Além de que o repertório para piano solo é vastíssimo e maravilhoso!
VSP: Recentemente, qual obra tem te emocionado?
NF: Toda grande obra, e não me refiro ao tamanho, quando interpretada por grandes artistas, me emociona. Obras menores também podem me emocionar quando a interpretação é sublime. Já uma grande obra numa versão medíocre me deixa irritado.