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Por dentro do galpão criativo do cineasta Luiz Fernando Carvalho em SP

Espaço na Vila Leopoldina serve como palco para a produção e preparação de seus filmes, como o novo ‘A Paixão Segundo G.H.’

Por Mattheus Goto
12 abr 2024, 06h00

É uma espécie de ritual. Na entrada, todos devem tirar os sapatos e ficar em silêncio. A orientação é esvaziar a mente e deixar o ritmo agitado da rotina do lado de fora. Ao atravessar o portão, encontra-se um espaço amplo, com pé-direito alto. Não há mobiliário fixo, apenas cortinas translúcidas e algumas mesas e cadeiras.

Dependendo do dia, cada canto do salão é ocupado por grupos diferentes de pessoas, envolvidos em atividades específicas, desde oficinas de máscaras neutras até trabalhos de voz com piano. O piso é laminado, com textura de madeira envernizada, e o teto tem estrutura metálica aparente, em formato de meia-lua.

Espaço recebe teóricas e práticas pautadas pelos filmes de Luiz Fernando Carvalho
Espaço recebe teóricas e práticas pautadas pelos filmes de Luiz Fernando Carvalho (Divulgação/Divulgação)

É nesse templo artístico que ocorre a preparação das produções do diretor carioca Luiz Fernando Carvalho, 63. Trata-se de um galpão de teatro, música, dança e literatura, alocado em uma antiga fábrica de papel abandonada na Vila Leopoldina, adaptada para receber seu processo criativo. O lugar foi inaugurado em janeiro de 2018, em parceria com a Academia de Filmes.

O concerto de abertura foi protagonizado pela atriz Maria Fernanda Cândido, 49, e pelo coreógrafo Ismael Ivo (1955-2021), já com o pretexto de dois projetos em vista na época: os filmes A Paixão Segundo G.H., que acaba de chegar aos cinemas, e Objetos Perdidos, ainda não gravado. Segundo o diretor, o trabalho no local é dividido em dois momentos.

Maria Fernanda Cândida em ensaio no galpão
Maria Fernanda Cândida em ensaio no galpão (Divulgação/Divulgação)

No primeiro, o espaço recebe oficinas teóricas e palestras com especialistas. No caso do longa inspirado no livro de 1964 de Clarice Lispector (1920-1977), alguns dos pensadores foram Yudith Rosenbaum, autora de dois livros sobre a escritora, Nádia Gotlib, uma referência nos estudos sobre Clarice, Maria Rita Kehl, crítica literária, e José Miguel Wisnik, músico e professor de literatura brasileira.

Depois, é a vez das oficinas práticas, de corpo, voz e respiração. “A intenção é afinar os timbres das personagens, para poder dar conta de tanta modulação”, ele diz. As atividades são abertas ao público.

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Maria Fernanda Cândido em oficina teórica sobre
Maria Fernanda Cândido em oficina teórica sobre “A Paixão Segundo G.H.” (Divulgação/Divulgação)

“É realmente um lugar sagrado para nós”, afirma Maria Fernanda Cândido, parceira de longa data do diretor. A atriz interpreta G.H. na versão cinematográfica do clássico da literatura, que levou cerca de um ano de preparação no galpão em São Paulo — e apenas quinze dias de gravação em um apartamento no Rio de Janeiro. Ela vê esse processo e essa ambientação como parte fundamental para assumir a personagem. “A gente precisa desse deslocamento dos nossos papéis cotidianos, para poder virar uma tela em branco, um instrumento”, ela comenta.

O filme sobre a obra da escritora nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira não se resume, no entanto, apenas à preparação na Vila Leopoldina e foi influenciado por outras experiências do cineasta na capital paulista.

Luiz Fernando Carvalho operou a câmera nas gravações de
Luiz Fernando Carvalho operou a câmera nas gravações de “A Paixão Segundo G.H.” (Antonio Garcia Couto/Divulgação)

A ideia do longa é antiga. Surgiu de outro filme, Lavoura Arcaica (2001), baseado na obra de Raduan Nassar. Durante a edição do longa, Carvalho sentiu a necessidade de criar um subtexto oculto para as cenas da personagem Ana (Simone Spoladore) e usou trechos de A Paixão Segundo G.H., por ver uma semelhança entre as duas.

“Não tinha a ideia nem o desejo de filmar o livro da Clarice”, diz o diretor. A proposta veio depois da estreia. “Fui chamado para falar sobre a interpolação entre cinema e literatura em um festival de Brasília e contei o que fiz. O filho da Clarice ficou sabendo e, quando cheguei ao Rio, o telefone tocou: era ele me chamando para filmar G.H. Fui enfeitiçado.”

Cumplicidade artística: Luiz Fernando Carvalho considera Maria Fernanda Cândido como coautora do filme
Luiz Fernando Carvalho considera Maria Fernanda Cândido como coautora do filme (Antonio Garcia Couto/Divulgação)

A chegada de Maria Fernanda ao projeto veio antes do início da produção. “A cumplicidade artística que existe entre nós, de mais de vinte anos, se impôs. Pensei em outras, mas era inevitável recorrer a ela.”

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Junto da preparação, essa colaboração permitiu que houvesse muito improviso no set. “A gente não tinha um mapa para guiar, então contamos com a confiança no fazer artístico do outro”, explica a atriz. Não havia um roteiro, apenas o apoio da jornalista e roteirista Melina Dalboni (leia mais abaixo) em cena. O diretor afirma que a filmagem foi feita diretamente em cima do livro e, por isso, não considera um roteiro adaptado, mas, sim, uma “reação à leitura”. Ou seja, o texto de Clarice foi mantido, mas a estrutura e a ordenação são diferentes.

Uma das diferenças entre as obras é a presença marcante da empregada Janair no longa. A escolha do cineasta veio durante sua vivência na capital paulista após a gravação. Ele voltou para cá e alugou uma pequena casa em Perdizes para realizar a montagem do filme, quando “aconteceram coisas importantes para a forma final”. “Todo dia eu tomava café da manhã em uma padaria do bairro, numa mesinha da calçada. Comecei a ver diariamente passar uma madame e, atrás dela, mantendo uma distância de 2 ou 3 metros, uma empregada negra, com os mesmos trajes do romance, avental e touca”, narra o diretor.

Cumplicidade artística: parceria de longa data entre a protagonista e o diretor
Cumplicidade artística: parceria de longa data entre a protagonista e o diretor (Divulgação/Divulgação)

Para ele, aquele “desfile trágico” dava a sensação de que a colonização e a escravidão foram atualizadas para os dias de hoje. “A visão me atormentou muito. Essa experiência nas ruas de São Paulo me fez puxar a Janair para o primeiro plano.”

O fato de a maior parte da produção ter se concentrado na capital paulista influenciou essa decisão. “Em toda circulação que eu fazia na cidade, identificava cenas de G.H. espalhadas”, analisa. “Mas também por São Paulo ser o local onde as bandeiras do contemporâneo estão mais organizadas e poder fornecer uma reflexão sobre o racismo da protagonista, a luta de classes e a ordem de exclusão da sociedade, contra nordestinos e refugiados, por exemplo. Nós, da classe média, somos educados e treinados a passar por cima das baratas humanas.”

Apesar de morar no Rio, Carvalho tem uma relação com São Paulo desde a infância. Quando tinha 7 anos, em meados dos anos 60, mudou-se para cá pois o pai, engenheiro ferroviário, estava trabalhando na construção da primeira linha do metrô, e moraram no Centro Histórico por cinco anos. “Tenho uma memória afetiva muito forte. Meu pai me levava para passear e me contava a história de cada prédio. Influenciado por essa visão da cidade, acabei fazendo arquitetura”, conta. “Escolher esse galpão em São Paulo foi uma forma de me reconectar com essa história. Também tenho muitos parceiros paulistas, como a Maria Fernanda.”

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Depois de G.H., o diretor usou o galpão para ensaiar e gravar a série Independências (2022), em parceria com a TV Cultura. Após cumprir os compromissos do lançamento do longa, vai focar na preparação do outro filme, Objetos Perdidos, também na capital paulista.

O roteiro de A Paixão Segundo G.H.

No set: Melina Dalboni (à esquerda) e Maria Fernanda Cândido
No set: Melina Dalboni (à esquerda) e Maria Fernanda Cândido (Kity Feo/Divulgação)

Em seu primeiro trabalho como roteirista, a jornalista e colunista de VEJA RIO Melina Dalboni enfrentou um desafio. Ela entrou no projeto em 2017, quando as ideias começaram a sair do papel.

“Era impossível não aceitar, sou apaixonada por Clarice”, conta. “O trabalho foi de desconstrução de um roteiro tradicional. A ideia era a fricção entre a literatura de Clarice e o cinema de Luiz Fernando.”

A convite do diretor, Melina participou das filmagens. “Criamos cenas ali na hora. Era a Maria Fernanda na frente, ele na câmera e eu do lado, no estudo do texto”, complementa. O trabalho seguiu depois da gravação e ela fez o roteiro final e a assistência de montagem. “Foi um trabalho que se estendeu por bastante tempo. Tão aprofundado, tão radical, que eu senti a necessidade de colocar em um livro.”

Lançado na semana passada em São Paulo, Diário de um filme: A Paixão Segundo G.H. narra todo o processo e inclui a transcrição na íntegra das palestras do galpão.

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Capa de
Capa de “Diário de um filme: A Paixão Segundo G.H.”, de Melina Dalboni (Divulgação/Divulgação)
Publicado em VEJA São Paulo de 12 de abril de 2024, edição nº 2888

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