Degustação de vinhos às cegas é bom ou ruim?
Saiba como funciona esse tipo de prova e quais são os seus prós e contras

A prova cega, ou seja, degustar um vinho sem saber qual é (para tal, basta embrulhar a garrafa para esconder o rótulo ou apresentar a bebida já na taça), se mostra uma ferramenta frequente em meu trabalho como crítico de vinhos.
Às vezes, no entanto, eu saio de um grande concurso, após julgar às cegas centenas de opções, me perguntando: que vinhos provei? O que aprendi? Frequentemente, encerrada uma extensa prova, me questiono: qual vinho mais gostei? E a resposta pode ser “a amostra 12”. Um número, apenas.
“Um velho especialista em vinhos, ao ser atropelado por um trem, teve seus lábios umedecidos com vinho para que recobrasse os sentidos. ‘Pauillac 1873’, murmurou ele antes de morrer”
Abrose Bierce.
Veja alguns tópicos sobre esse assunto:
Vinho cultural x vinho sensorial
Podemos abordar a apreciação de um vinho de duas maneiras: uma sensorial, que lê suas qualidade intrínsecas (aroma, sabor etc.), e outra, mais abrangente, que vê elementos que não estão diretamente no líquido, mas que fazem parte de sua identidade, como sua origem, sua tradição, sua história e estórias.
Vantagens da prova cega
A prova cega é fundamental e indispensável. É impossível uma avaliação 100% isenta em uma prova que não seja às cegas. Esta ferramenta é muito usada em concursos, matérias e com fins didáticos (em aulas, cursos) ou comerciais (para compradores de importadoras, lojas etc.). É um exercício intelectual de alto nível e pode ser também uma brincadeira educativa e divertida. Nos concursos internacionais, em sua maioria, sabemos do rótulo apenas sua origem, safra e casta, mas não seu nome e produtor, o que proporciona uma avaliação coerente e ainda isenta.
Desvantagens da prova cega
Ao degustarmos um vinho, criamos uma memória desta sensação e de tudo que vivenciamos ao provar aquela bebida naquele exato momento. Em uma prova cega, esta memória, em grande parte, se perde, pois as sensações carecerão de um nome, de uma identidade. Ao final das provas cegas os nomes dos vinhos são revelados, mas aí pode ser tarde, o momento da sensação já passou e não foi associado ele. A experiência é certamente mais pobre, pois deixamos de degustar cultura. Ao provar um vinho da Toscana, quero rever em seu gosto suas suaves planícies e saborear as memórias que trouxe de lá. Ao provar um vinho do Douro, quero perceber em seus aromas a parcela que vem de sua radical paisagem e a que vem das ervas de sua flora. Ao degustar um Borgonha provaerei a tradição dos monges da abadia de Cîteaux, que visitei e que me lembrarei. Ao tomar um vinho de um produtor que conheço pessoalmente, também degustarei as conversas que tivemos. Ao degustar um vinho grego de Santorini, degustarei também seu por do sol.
Conclusão
Continuarei provando às cegas, pois é a única maneira de ser isento em uma matéria ou em um concurso, ou mesmo para exercício didático. Mas, na hora do prazer, quero sim, saber e degustar o rótulo, seu nome, sua origem, seu prestígio, sua história. Ao avaliar profissionalmente um vinho mítico, devo me atentar só ao vinho, sem levar em conta o mito. Ao degustar por prazer, quero me encantar com o líquido e também com o mito. Muitas vezes abro uma garrafa não só pelo que o vinho é, mas também pelo que ele representa.
Em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, há uma passagem em que Sancho Pança, personagem notório por contar vantagem em tudo, diz que em sua família existiam grandes degustadores, tanto que numa ocasião dois deles, ao provar o vinho de um determinado tonel, concordaram em tudo, menos em um sutil aroma que um dizia ser couro e outro dizia ser ferro. E continuaram bebendo e discutindo até esvaziarem por completo o tonel e acharem, lá no fundo, um chaveirinho de couro…