Um novo arcabouço de valores
Julia Maggion, CEO e cofundadora da Ateha, fala de sua experiência em rever uma vida turbulenta de negócios em São Paulo e buscar novos caminhos
Eu sempre fui muito inquieta e enérgica, e no trabalho não seria diferente. Meu objetivo profissional nos últimos anos tem sido fazer tudo ao meu alcance para provar que os negócios podem ser uma força para o bem. Em doze anos, fui mãe de três crianças, da criação do Sistema B Brasil, de uma empresa de impacto social e de alguns negócios regenerativos. Até que, em 2018, a vida ficou tão turbulenta que não sobrava tempo. Estava com anemia, vitaminas baixas, exausta física e emocionalmente. trabalhando com regeneração e me desintegrando, que incoerência. Foi aí que eu e minha família decidimos nos mudar de São Paulo para Garopaba, Santa Catarina.
Essa mudança me fez refletir sobre diversas coisas. Primeiro, sobre o que era importante para mim, na minha individualidade e na busca pela minha maior potência, mas também no meu papel na comunidade da qual faço parte. também me fez rever princípios patriarcais sobre os quais a minha vida prévia estava fundamentada. Aprendi que, dentre os muitos movimentos que hoje atuam pela mudança das estruturas sociais, os movimentos feministas e os movimentos ecológicos são os que mais defendem profundas transformações de valores, e neles eu mergulhei.
Assim que nós chegamos a Garopaba, participei de duas experiências determinantes: uma Jornada do Sagrado feminino, com a Morena Cardoso, da DanzaMedicina, e um curso de agrofloresta, com o Namastê. essas experiências me abriram a porta para um recomeço. A valorização de características da essência feminina, como a intuição e os sentimentos; uma redefinição nas relações entre os sexos; uma noção de existência inserida nos processos cíclicos da natureza; e um profundo entendimento sobre as relações dos seres humanos com a natureza. Fui me reconectando com as minhas origens, a minha essência, o meu papel no mundo. Essa jornada transformou a minha vida, fortalecendo a ligação com as minhas filhas e com a minha origem, além de clarear a minha visão de empreendedora com propósito.
As mulheres da minha família são muito fortes, empresárias, líderes e sou grata pelo que construíram, mas a minha missão não é replicar o seu modelo. Quero empreender com outro olhar. Com o da consciência de que todas as formas de vida são interligadas e de que a nossa existência depende dos processos cíclicos da natureza. Acredito nesse caminho e como sociedade precisamos de um novo arcabouço de valores que sustente essa visão. Somos parte de um sistema inteligente.
Eu tenho uma ligação muito forte com o esporte, treinei natação até os 18 anos, quando também aprendi a surfar. Entendi que preciso praticar exercícios diariamente, isso faz com que eu tenha mais disciplina e concentração, além de me conectar com a natureza e com a minha intuição para as tomadas de decisão. As caminhadas na praia no amanhecer de segunda-feira organizam a minha semana. A ioga me faz respirar. O surfe me desafia. O funcional me dá estrutura. É no movimento que encontro a energia para seguir em frente.
Parece que tudo o que fiz até hoje foi uma peça no quebra-cabeça para assumir o papel inspirador e desafiador de liderança que exerço hoje. É uma grande oportunidade, junto com os meus sócios, parceiros, colaboradores e muitas pessoas incríveis de seguir totalmente alinhada com o meu propósito pessoal e gerar impacto positivo na sociedade.
Trabalho continuamente para fazer uma gestão assertiva, conectada a uma visão sistêmica e colaborativa. Sigo afinando meu olhar para a construção de mecanismos de descentralização de poder e das organizações em rede. O nosso desafio hoje é criar uma rede de conhecimento distribuída e acessível sobre mudanças, soluções e impacto climático. estou em busca de pessoas alinhadas com esse objetivo. O que não é fácil, pois exige rompermos com muitas estruturas do ego.
Acredito que a ascensão da consciência e das lideranças femininas, com um olhar e uma escuta mais ampla e disponível, a valorização da intuição e a prática do diálogo, associada a uma visão regenerativa, já estão provocando uma profunda mudança nos pensamentos e nos valores — de sistemas de acumulação e degradação para cadeias circulares de matéria e energia; do foco em objetos e exploração de recursos naturais para o foco em serviços e valorização dos recursos humanos; da busca da felicidade nos bens materiais para o encontro da mesma felicidade nas relações com a família, amigos e comunidade. A felicidade em trilhar um caminho íntegro e coerente. São essas as maiores fontes de alegria! E é nesse fluxo potente que quero seguir, com transformação de pessoas, empresas e capital, refinando o olhar para uma economia regenerativa.
Quero mostrar que é possível, sim, ganhar dinheiro com o empreendedorismo de impacto, empreender para a sociedade e para o meio ambiente, gerando resultados positivos para todos. Para isso precisamos construir essa rede de conhecimento e educar as pessoas para que possam desenvolver ações de impacto e soluções para as questões climáticas.
Uma comunidade onde possamos estar conectados e colaborar para favorecer a nossa e as próximas gerações, todos os dias.
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Publicado em VEJA São Paulo de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823