Ecos do front: na Vila Zelina, famílias vivem sob a tensão da guerra na Ucrânia
Bairro da Zona Leste reúne imigrantes russos e ucranianos; muitos buscam apoio e erguem a voz contra o conflito em uma igreja da região
“Estamos vivendo os tormentos da guerra. Guerra, não: invasão! Estão massacrando o nosso povo, como fizeram com nossos tataravós, que fugiram do bolchevismo”, diz o padre Josafat Vozivoda, na missa de domingo (6) da Paróquia Católica Ucraniana Nossa Senhora da Glória, encravada no alto de uma ladeira da Vila Zelina, Zona Leste de São Paulo.
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Foram poucas as palavras em português ditas aos quarenta presentes naquela manhã — a cerimônia é quase toda em ucraniano. Os cânticos, no mesmo idioma, são entoados por três freiras no banco próximo ao altar. Perto das 13 horas, o sino bate. A missa termina, mas a tensa mensagem de Vozivoda ecoa na vizinhança, marcada pela imigração de russos, ucranianos e outros povos do Leste Europeu, como lituanos e poloneses.
Desde que a guerra explodiu na Ucrânia, após a invasão russa de 24 de fevereiro, a tristeza e o inconformismo rondam as reuniões semanais da paróquia — sempre aos domingos, às 10 horas. A comunidade religiosa tem aproximadamente 100 frequentadores, entre os cerca de 10 000 ucranianos ou descendentes que moram na capital e na região metropolitana, boa parte em São Caetano do Sul, no ABC.
A missa segue a tradição católica, mais comum no oeste do país europeu, de maioria ortodoxa. “Antigamente, quase todos os fiéis moravam no bairro. Nos anos 40, os imigrantes vinham para cá porque havia quem falasse o idioma. Nas últimas décadas, porém, as famílias — e os novos imigrantes — se espalharam pela cidade”, explica o padre Estefano Wonsik, 33, da mesma igreja, que morou por quatro anos em Lviv, na Ucrânia.
“Até 1958, viviam 78 famílias ucranianas nos arredores da igreja. Atualmente, são cerca de 22”, diz a arquiteta Nadia Kuchar, 68, filha de ucranianos e estudiosa da história da comunidade.
A imponente catedral (abaixo), construída em 1960, vive cercada por três templos russos ortodoxos e uma Assembleia de Deus evangélica russa, instalada na região em 1939. Uma dessas igrejas, localizada em uma pacata rua do bairro, é adepta do chamado “rito antigo”, ou staroveri, dissidência surgida em 1666 contra reformas ortodoxas do período.
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As diferenças de crença explicam, em parte, a distância entre os religiosos dos dois países na Vila Zelina. “Nunca houve amizade entre as igrejas, ainda menos agora”, diz o padre Wonsik, sem disfarçar aindignação suscitada pela guerra. “Não recebemos nenhum gesto de apoio neste momento”, ele afirma.
A reportagem procurou a igreja ortodoxa russa, que optou por não dar entrevista. “Essa dor também é nossa, respeite o nosso silêncio. Não cabe a nós acabar a guerra, e sim orar para que ela chegue ao fim. Todos queremos a paz”, disse um representante que não quis se identificar — o contato era do bispo George Petrenko, da Igreja Santíssima Trindade.
As igrejas são a principal marca da imigração europeia no bairro — há ainda uma catedral lituana, na praça central. Não existem bares ou restaurantes típicos — a exceção é o Bar do Vito, de origem lituana, aberto em 1942. A pizzaria russa Famiglia Klestoff, que vendia pizzas quadradas e fez sucesso na Copa de 2018 ao distribuir vodca de graça nos gols da Rússia, fechou em 2019.
“A cultura do Leste Europeu é pouco divulgada em São Paulo, isso não ajuda os negócios”, diz Victor Gers, diretor da associação de comerciantes e moradores da Vila Zelina, a Amoviza. Representante da comunidade russa (a bisavó nasceu no país), Gers organiza a feira cultural e gastronômica do bairro, cuja próxima edição está marcada para domingo (13).
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É a melhor oportunidade para experimentar os quitutes típicos do Leste Europeu, como o varenique. No restante do ano, o visitante encontra apenas uma rotisseria com alguns pratos tradicionais e uma padaria que vende o famoso pão preto — os donos, porém, são portugueses.
“Usamos a receita original, que passou de mão em mão até o nosso padeiro. O pão tem um sabor mais azedo e a casca mais firme”, diz Beatriz Oliveira, nutricionista da padaria A Praça. “Temos um projeto para criar uma decoração temática em uma rua do bairro, mas falta levantar os recursos”, diz Gers.
As notícias dos últimos dias são particularmente duras para quem viveu o horror de uma guerra. Nascida em Starobelsk, na Ucrânia, Luba Fesz, 96 anos (acima), mudou-se para o Brasil após o fim da II Guerra Mundial, em 1946. O pai tinha morrido na prisão, depois de se recusar a entregar as terras da família à União Soviética. “Cheguei aos 21 anos. A gente não tinha para onde ir. Trabalhei em fazendas em Maracaí (no interior paulista)”, ela conta.
Depois de uma grave tuberculose, Luba tem apenas a metade de um pulmão funcionando, mas acompanha bem o senta e levanta da missa. “Na verdade, vim fazer lua de mel”, ela brinca, por ter se mudado para o país logo após o casamento. Quase todas as famílias ucranianas da Vila Zelina, da mesma forma, chegaram após a II Guerra — as levas anteriores, vindas principalmente na I Guerra e na Revolução Russa de 1917, se concentraram no Sul do país; a geração de Luba, por sua vez, tinha experiência na indústria e acabou atraída pelos empregos da cidade.
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“Minha mãe está muito triste por ver a guerra se repetir na Ucrânia. Ela acompanha sempre os noticiários e fica emocionada ao falar sobre isso”, diz Irene Fesz, 58, professora da rede estadual — sentimento que dona Luba também compartilha com a reportagem. “Moro no bairro desde que nasci. Na nossa rua, viviam muitos ucranianos que ajudaram a construir a igreja”, diz a filha, que aprendeu o idioma com as freiras de um colégio local.
“Costumamos fazer almoços para comer pão preto com sopa. Antes da pandemia, vinham os russos ortodoxos. Sempre mantivemos uma cordialidade, nuca houve atrito”, ela relata. É o mesmo sentimento de Gers, da comunidade russa. “À parte as diferenças das igrejas, os moradores sempre viveram em harmonia. Ninguém é a favor da guerra”, ele diz.
A histórica convivência no bairro, porém, também pode acabar marcada pelo conflito europeu. “Eu esperava que a comunidade russa se manifestasse de maneira mais contundente pela paz. Pessoalmente, não recebi nenhuma mensagem de apoio”, queixa-se Jorge Rybka, cônsul da Ucrânia em São Paulo e um dos principais porta-vozes dos ucranianos no país.
“Sempre vivemos em harmonia, com um povo frequentando as festas do outro. Mas, neste momento, não dá para ficar em cima do muro. Senão, aqueles que sempre os consideraram amigos ficam com uma pulga atrás da orelha”, ele afirma. Outro reflexo provável da guerra seria a chegada de uma nova leva de imigrantes ucranianos à cidade — no caso, refugiados.
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Segundo Rybka, há uma lista com cerca de 100 interessados em abrigo no país. “O governo e a prefeitura de São Paulo colocaram as secretarias à disposição para facilitar esse processo, se necessário”, afirma o cônsul. “A verdade é que todos os imigrantes que vieram para cá no passado, dos dois países, chegaram com uma mão na frente e a outra atrás”, completa Danilo Zajac, 29, neto de ucranianos e regente do coral da igreja.
“Era natural que os povos se aproximassem na cidade. A melhor amiga da minha avó era russa”, ele diz. Pesquisador da cultura do bairro, Zajac e outros entrevistados fazem uma ressalva: a Vila Zelina é uma “macrorregião” que reúne povos do Leste Europeu, mas os ucranianos se concentraram especialmente na “sub-região” da Vila Bela, uma área mais nobre próximo ao limite de São Caetano do Sul.
Em frente à igreja, fica o Colégio Aparecida, também de origem ucraniana, fundado em 1956. As freiras davam cursos do idioma nas férias. “Até 2010, tínhamos trinta alunos”, diz a diretora, Rosângela Campanharo. O último foi em 2018, com cinco participantes. “As gerações antigas tinham parentes na Ucrânia. As novas não veem necessidade de falar ucraniano”, ela diz.
Mas a resistência cultural também tem vez no bairro. “Meus filhos fazem catequese com as irmãs”, diz Alexandre Captia, 44, neto de ucranianos (acima). “Sonho em conhecer o país”, diz. É, também, a vontade de Danilo. “Mesmo sem ter ido, tenho um orgulho enorme de lá. E a guerra faz com que eu me sinta ainda mais ‘ucraniano’”.
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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de março de 2022, edição nº 2780