Na Zona Oeste, moradores de condomínios se unem contra habitação popular
“Se viesse só o rapaz que trabalha e come marmita, não haveria problema. A questão é o que vem junto”, critica o membro de uma associação de moradores
Um terreno de 33 000 metros quadrados — o equivalente a duas vezes a área que abriga o Conjunto Nacional, na Paulista — vem causando discórdia na Vila Leopoldina, na Zona Oeste. De um lado está um grupo formado por quatro empresas, encabeçado pela Votorantim, que negocia autorização da prefeitura para construir ali um conjunto habitacional; do outro, os moradores dos condomínios de luxo do entorno, que temem a desvalorização dos imóveis e o aumento da violência na região.
No meio do imbróglio estão os habitantes de duas favelas localizadas a cerca de 1 quilômetro de distância, que vivem no local há cinquenta anos e seriam realocados na nova área. Uma audiência pública sobre o assunto, que reuniu 600 pessoas, foi realizada no bairro no fim do mês passado. Em vez de levar a uma conciliação, o encontro só acirrou os ânimos.
“Se viesse só o rapaz que trabalha e come marmita, não haveria problema. A questão é o que vem junto”, argumenta o administrador de empresas Carlos Alexandre de Oliveira, de 47 anos, conselheiro fiscal da Associação Viva Leopoldina, que também reclama dos pancadões que ocorrem nas favelas nas madrugadas dos fins de semana (algo que o poder público falha em disciplinar). “Imagina esse pessoal aqui do nosso lado.” Ele é autor de um abaixo-assinado contra a proposta que já conta com 3 000 assinaturas. “Preconceito é crime”, rebate o ajudante-geral Welton de Oliveira, 24, morador de uma das comunidades.
A construção de moradias populares faz parte de um plano maior, o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina, aprovado em 2016 ainda na gestão de Fernando Haddad. A proposta, apresentada pela Votorantim em parceria com as empresas Bvep e SDI e com o Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), autor do projeto arquitetônico do programa, prevê o seguinte acordo: o grupo se compromete a realocar os moradores de duas favelas do bairro, a da Linha (às margens da linha de trem da CPTM) e a do Nove (em frente ao portão 9 da Ceagesp), em dois conjuntos habitacionais, a ser construídos pelas companhias. Além disso, reformará o antigo Cingapura Madeirite, onde vivem cerca de 400 famílias, e reurbanizará a área, com a abertura de ruas e a criação de quarteirões.
O custo da empreitada será de 110 milhões de reais — 80 milhões bancados pelas empresas e o restante pela prefeitura. Em troca das benfeitorias, o grupo poderá levantar, em um terreno próprio de 100 000 metros quadrados — o equivalente à área do Parque da Aclimação —, um empreendimento até quatro vezes maior que o total da área (sem o PIU, a permissão seria de no máximo duas vezes a dimensão desse espaço). “A ideia é criar um ambiente de uso misto, ou seja: uma parte seria residencial e a outra, de comércio e varejo”, prevê Philip Yang, diretor-geral do Urbem.
A ideia da prefeitura é, no futuro, estender essa reurbanização para o perímetro inteiro, de 300 000 metros quadrados, abrangendo assim outros terrenos vizinhos. Pela proposta, 250 famílias que vivem nas duas favelas atualmente devem ser realocadas nos edifícios que ocuparão parte do terreno da Votorantim. Outras 526 serão transferidas para outro conjunto de prédios, que será construído em uma área da SPTrans, antiga garagem de ônibus da CMTC — justamente o motivo de insatisfação dos moradores.
O imóvel está localizado em uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis), ou seja, por lei, deve ser dedicado ao assentamento habitacional de população de baixa renda. No entanto, a área está rodeada de novos condomínios residenciais de alto padrão, que surgiram ali na última década. Cada unidade custa em torno de 1,5 milhão de reais, com IPTU de até 6 000 reais.
Criadas a partir da instalação da Ceagesp, no fim dos anos 60, as favelas do entorno foram crescendo ao receber migrantes sobretudo do Norte e Nordeste. Um dos primeiros a chegar foi o carregador baiano Agnaldo Moreno, que desembarcou em 1972 e trouxe quinze irmãos. Hoje, sua família é a maior do pedaço: conta com 200 integrantes. Um deles é o pedreiro Carlos Beraldo, 37. “Não podemos ficar confinados aqui para sempre, e o terreno da CMTC é o mais viável.”
Para tentar barrar a mudança, um grupo de moradores criou o Movimento Defenda Vila Leopoldina, formado por cerca de 4 000 pessoas. Foi contratado, inclusive, o escritório de advogados BMA Barbosa Mussnich Aragão, para uma consultoria técnica. “Não somos contra a moradia popular, mas como garantir que não venham junto traficantes e outros criminosos?”, indaga a terapeuta ocupacional Renata Nagai, uma das diretoras do movimento. Yang, do Urbem, afirma que o programa inclui medidas preventivas para que isso não aconteça. “Está reservada uma verba para a capacitação da gestão e formação de síndicos”, conclui.
“A integração das pessoas que chegarem é perfeitamente possível”, acredita a artista plástica Elisa Bracher, que administra há quase vinte anos o Instituto Acaia, voltado ao ensino profissional e artístico de crianças carentes da região. Outro ponto levantado pelo movimento é que o solo da antiga garagem está tomado por substâncias tóxicas, decorrentes de acúmulo de combustível. No entanto, um relatório preliminar da prefeitura atestou que a contaminação é mínima e pode ser resolvida com um procedimento para eliminar o problema.
A previsão é que o PIU Vila Leopoldina seja votado na Câmara Municipal no segundo semestre. Se aprovado, a construção das moradias populares deve ser concluída em dois anos.
Não é a primeira vez que um empreendimento social sofre a pressão de vizinhos. Em 2011, um grupo de condôminos de nove prédios do Real Parque acionou, sem sucesso, o Ministério Público para que a construção de 1 775 moradias populares fosse paralisada. Em 2010, moradores de Higienópolis se movimentaram para impedir uma estação de metrô. A frase clássica atribuída a uma vizinha, segundo a qual uma estação atrai mendigos e “gente diferenciada”, virou meme.
A próxima disputa prevista pela prefeitura é na Barra Funda, onde ocorrerá a construção de 1 500 apartamentos populares em frente ao condomínio Jardim das Perdizes. O dinheiro estimado para as obras, 500 milhões de reais, está “carimbado” pela Operação Urbana Água Branca. O secretário municipal de Habitação, Fernando Chucre, já está esperando novos embates em audiências públicas. “O enredo é sempre igual: eles chegam às reuniões, reclamam dos novos vizinhos e logo vão embora.”