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Viabilizar moradia a preço acessível deveria ser o legado da pandemia

Empreendedor social e CEO da Magik JC, André Czitrom debate como tornar a habitação mais atingível e sustentável no pós-quarentena

Por André Czitrom
Atualizado em 27 Maio 2024, 17h54 - Publicado em 10 jul 2020, 06h00
Casas sobrepostas em favela na Zona Norte
Multiplicação das lajes na periferia: favelas se viram na urgência habitacional (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Muito se tem falado sobre o novo normal. A discussão abarca não apenas questões de sanitização e protocolos de saúde, mas também a revisão de parâmetros econômicos, sociais e de desenvolvimento urbano. Há dúvidas sobre se as cidades e seus enormes contingentes populacionais conseguirão adaptar-se ao mundo pós-pandemia. Uma importante chave para essa resposta está na maneira como a habitação será encarada daqui em diante.

O lugar onde uma pessoa mora é determinante para estabelecer seu grau de suscetibilidade ao coronavírus e sua (in)capacidade de praticar o isolamento social e criar uma rotina minimamente estruturada durante a quarentena. Diante disso, discutir a crescente importância da varanda gourmet, se o home office tomará o lugar dela nos novos empreendimentos ou se esses passarão a ter aeroporto de drone é seguir com um olhar míope para o futuro. Mas infelizmente esse é o assunto que tem tomado conta das mídias e das intermináveis lives com os experts do mercado imobiliário e financeiro nos últimos meses. O verdadeiro legado da pandemia para a habitação precisa ser mais do que um produto imobiliário à prova de contaminação e deve levar em conta os problemas estruturais que a cidade ainda não resolveu nesse campo. A maioria da população da cidade não pode se dar ao luxo de rever a forma de morar. Eles ainda nem moram com condições mínimas de conforto e salubridade.

Antes da pandemia, o déficit habitacional já era de quase 8 milhões de moradias no país e havia crescido 7% nos dez anos anteriores, como aponta levantamento da Fundação Getulio Vargas realizado com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Na outra ponta, não alcançamos por parte dos programas públicos um patamar de produção que nos permita avaliar a real eficácia dos modelos existentes, e se de fato atendem quem mais precisa. Ou seja, se de um lado o mercado olha para questões pontuais, de outro os gestores patinam em buscar, inclusive em termos de prazos e custos de execução, alternativas de enfrentamento da precariedade. Nesse contexto, está mais do que provado que a solução para a habitação acessível não pode ser jogada nas costas do poder público e que o mercado imobiliário deve rever seu papel para construtor de cidade, e não apenas de empreendimentos.

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Embora muitas vezes colocados como opositores, tanto poder público quanto mercado imobiliário e acadêmicos compartilham a defesa de algumas bandeiras, e a habitação acessível certamente está entre elas. Está claro, e é óbvio: precisamos um do outro para fazer dar certo. Temos profissionais extremamente capacitados em todos esses setores, gente comprometida, experiente, séria e dedicada. Não é mais possível terceirizarmos responsabilidades nem seguirmos nesse eterno jogo de atribuição de culpas à espera de soluções mágicas. Precisamos todos nos sentar em torno da mesma mesa de discussão, sem disputas por protagonismo, sem repetir os mesmos lugares-comuns e discursos datados, deixando de lado egos e pretensões políticas, para juntos encontrarmos alinhamento e viabilidade. É urgente que haja uma atuação de verdade, pois de nada vai adiantar termos um plano premiado internacionalmente se ele ainda não incentiva, na prática, a produção de habitação de que a cidade precisa.

As ferramentas estão disponíveis, mas podem ser melhoradas por meio de calibragens de marcos regulatórios e que futuramente passem a integrar políticas públicas. Em São Paulo seria possível, por exemplo, rever o baixo adensamento nas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), incentivando a produção, pela iniciativa privada, de moradia para famílias com renda de até três salários mínimos. Outra possibilidade é criar uma legislação simplificada que permita a requalificação de prédios (retrofit) abandonados pelo poder público e localizados em uma das mais nobres áreas da cidade, o centro. Por que grandes cidades do mundo viabilizam reformas em prédios antigos e São Paulo ainda não conseguiu? A impressão que passa é que o descaso e o excesso de legislação nos tornam muito mais prudentes e responsáveis do que Berlim ou Nova York. É urgente, ainda, estabelecer um dispositivo legal para incentivar a produção de empreendimentos destinados ao aluguel, criando opções de locação acessíveis a famílias de menor renda que não podem se comprometer com financiamento bancário ou não conseguem se enquadrar nos critérios para liberação de crédito exigidos pela Caixa Econômica Federal — entre eles, dispor de um emprego formal em um momento em que o país tem 17,8 milhões de desempregados, outros 37 milhões de informais e 4 milhões de postos de trabalho destruídos em dois meses, ainda com dados de abril.

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Isso para citar apenas algumas das possíveis soluções de simples execução mas que, infelizmente, se tornam discussões infundadas e filosóficas sobre “qual seria o grupo especulador que pretende encontrar soluções práticas para habitação”. Por fim, o assunto, como é de costume por aqui, vira uma disputa política, comprometendo o desenvolvimento da cidade.

Do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, incentivar a habitação econômica é conter invasões de áreas sob proteção ambiental, ampliar o acesso ao saneamento básico, proteger famílias da influência do tráfico e requalificar áreas degradadas da cidade. Não é preciso apresentar um grande projeto que transformará a cidade inteira de uma só vez, até porque, como já cansamos de ver, eles nunca saem do papel. Temos de fatiar esses “projetos de master plan perfeitos” e atuar de forma simples e eficiente. Há debates sem fim sobre as conquistas ou defeitos de leis de zoneamentos que não se mostraram eficientes, esquecendo-se de analisar sua calibragem na cidade.

Neste momento, com recursos escassos e demanda crescente, a hora é de focar nos combates específicos, entendendo que essa disputa jamais será vencida por nocaute, mas somente por um longo embate de pontos corridos onde quem precisa ganhar são a cidade e a sociedade. Somando forças, expertises e coordenando um conjunto de pequenas ações certamente contribuiremos de forma muito mais eficiente para uma cidade mais democrática, reduzindo as consequências devastadoras da pandemia.

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Estou torcendo para que, desta vez, nossa memória não seja curta e seletiva. Afinal, passaram-se mais de dois anos que o Edifício Wilton Paes de Almeida desabou no centro da cidade. Há quase seis meses o governo municipal anunciou que faria um prédio no local. Foi logo depois lembrado de quanto o modelo proposto é ineficiente. Espero que, ao relermos este texto daqui a alguns meses, estejamos celebrando juntos o verdadeiro legado da pandemia para o campo da habitação da nossa cidade.

Andre Czitrom
(Alexandre Battibugli/Veja SP)

André Czitrom é empreendedor social e CEO da Magik JC, incorporadora que desenvolve projetos Minha Casa Minha Vida no centro de São Paulo com arquitetura e design destinados a famílias que ganham de zero a seis salários mínimos. A empresa é certificada pelo Sistema B, rede global que apoia negócios geradores de impactos positivos em suas áreas de atuação. É formado em engenharia pelo Mackenzie e pós-graduado em história da arte pela Faap.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de julho de 2020, edição nº 2695. 

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