Herança da colonização lusitana no Brasil, as tradicionais pedras portuguesas cobrem parte do piso do centro de São Paulo desde o século XIX. O material ganhou mais força em nossa paisagem no fim dos anos 70, quando o então prefeito Olavo Setúbal o escolheu para cobrir os calçadões nas redondezas da Praça do Patriarca. Pois esse visual tão familiar vai mudar radicalmente no ano que vem.
Em janeiro, a prefeitura começará a trocar o pavimento dos passeios de 36 ruas, na área compreendida entre a Praça da República, o Largo São Bento, o Pátio do Colégio e o Vale do Anhangabaú. Serão instaladas nesses locais placas de concreto mais modernas, semelhantes às da Avenida Paulista.
O novo modelo ganhou fama no mercado por ser de fácil conservação. No caso, por exemplo, de reparos em canos subterrâneos — água, esgoto e até cabos de telefonia —, é possível tapar o buraco em menos de 24 horas. Quando o chão é coberto pelo material mais antigo, o trabalho manual pode demorar dias.
Outro ponto que se levou em conta para a sua adoção foi a característica antiderrapante. “Estima-se que ocorram 5 400 quedas naquela região por ano”, diz o secretário das Prefeituras Regionais, Cláudio Carvalho, responsável pelo projeto. “A intenção é reduzir esse quadro.” Há ainda o custo menor de implantação. No caso do concreto, o metro quadrado sai em torno de 170 reais, 20% menos que o da pedra portuguesa. A reforma toda deverá custar 10,2 milhões de reais.
Como virou marca registrada da atual gestão, doações da iniciativa privada deverão viabilizar a proposta. A própria empresa interessada em adotar o espaço será a responsável pela contratação do serviço. À prefeitura caberá apenas a tarefa de fiscalizar o andamento e o resultado do negócio. Os primeiros contratos devem ser fechados nos próximos dias. “Várias instituições que atuam naquela região se interessaram”, diz o prefeito João Doria. “A contrapartida será o benefício de ter um piso em perfeito estado em frente a seu estabelecimento.”
A mudança será realizada em três etapas. Começa em 2 de janeiro, em quatro quarteirões vizinhos à Praça Antônio Prado. Essa área, de 11 000 metros quadrados, deverá ser entregue até a festa de aniversário da cidade, no dia 25 de janeiro. A segunda fase, em um perímetro entre as ruas Líbero Badaró e Boa Vista, está prevista para ser finalizada até dezembro de 2018. A última, entre a Avenida Ipiranga e o Teatro Municipal, terminará em 2019.
O entorno de pontos tradicionais — como a Catedral da Sé, o Viaduto do Chá, o Vale do Anhangabaú e a Praça da República — não sofrerá intervenções. As calçadas de outros seis prédios tombados, no entanto, foram incluídas no projeto de reforma. São os casos, por exemplo, da Biblioteca Mario de Andrade e da Igreja Santo Antônio.
Para permitir a modificação, o projeto deverá seguir nesta semana para aprovação dos conselhos municipal (Conpresp) e estadual (Condephaat) de patrimônio histórico. Nesses pontos, a intenção é repetir o modelo adotado no também tombado Conjunto Nacional, na Avenida Paulista: a entrada do prédio mantém-se com as pedras portuguesas e o trecho próximo ao meio-fio recebe as placas de concreto. “O plano será certamente aprovado até o fim do ano”, prevê a diretora do Departamento do Patrimônio Histórico, Mariana Rolim.
Ações semelhantes ocorreram em outras cidades. Em outubro, a prefeitura carioca anunciou um plano para reforçar as calçadas de várias regiões. Em péssimo estado de conservação, as pedras portuguesas serão retiradas de locais como a Praça Serzedelo Correa, em Copacabana. Em Lisboa, em 2015, um plebiscito popular decidiu-se pela troca das tradicionais pedras pelo piso de concreto no bairro do Campolide.
Há quem não concorde com a mudança. “Quando bem aplicadas, as pedras portuguesas duram bastante”, afirma a arquiteta Rosa Kliass, responsável pela implantação do material na Avenida Paulista nos anos 70 — trocado por concreto em 2007. “Aqui no Brasil, os governos não se preocupam em planejar nem preservar a cultura”, acredita Marcos de Sousa, diretor do instituto Mobilize Brasil, sobre mobilidade urbana.
A maioria das pessoas, no entanto, adota uma postura mais pragmática. “Andar sobre aquelas pedras mal colocadas é um desastre”, diz o presidente da Associação Brasileira de Pedestres em São Paulo, José Ignácio de Almeida.