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“Ser trans me fez lutar pela herança”, diz filha de Roger Haber

Bruna Haber, filha fora do casamento de suposto doleiro envolvido em casos que vão de Maluf à Lava-Jato, vai à Justiça pelo patrimônio milionário do pai

Por Pedro Carvalho
25 dez 2020, 09h07

Bruna Haber, 20, só se sentiu livre para assumir a transgeneridade depois de terminar o colégio, em 2017. “O ensino médio era uma prisão. Se me vestisse como tinha vontade, não seria perdoada pelos colegas”, diz a jovem de Cotia, na Grande de São Paulo, que alterou os documentos para o feminino em março.

As mudanças na aparência e no RG, porém, não foram as únicas que experimentou após a formatura — na qual, mesmo desconfortável, vestiu um terno. Enquanto ainda se chamava Daniel, Bruna era excepcionalmente tímida, tinha dificuldade até para conversar com um adulto. Após se tornar mulher, adotou uma personalidade diferente. “Passei a me posicionar, a brigar quando preciso. Foi isso que me fez ir atrás dos meus direitos”, diz.

Por “seus direitos”, ela se refere a uma herança milionária deixada pelo empresário Roger Haber, morto em 2010. Denunciado como operador de uma conta offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, a Agata International Holdings, por onde teriam passado 600 milhões de dólares de nomes investigados na CPI do Banestado (nos anos 1990) e na Operação Lava-Jato, Roger se notabilizou por ter uma lista de clientes ilustres, que, segundo o Ministério Público Federal, vai do ex-prefeito Paulo Maluf aos publicitários Duda Mendonça e João Santana.

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Bruna é fruto de uma relação extraconjugal entre Roger (pronuncia-se Rogê) e uma empregada que dormia na casa da família, à época no bairro do Itaim. (A mãe, 57, ainda trabalha como doméstica e pediu para não ter o nome divulgado.) “Morei na casa deles até os 2 anos, como a filha da empregada”, conta a jovem. Em 2012, os Haber concordaram em fazer um teste de DNA, que confirmou a paternidade. Bruna, assim, passou a ter direito a um oitavo do patrimônio deixado pelo empresário — nesse tipo de partilha, metade vai diretamente para a viúva, Myrian, 83, e o restante é dividido entre Bruna e os três filhos do casal, um deles já falecido. Mas o assunto virou briga na Justiça.

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Segundo o Ministério Público Federal, a offshore controlada por Roger movimentou 600 milhões de dólares para seus clientes

Ao propor essa divisão, os Haber afirmaram que o patrimônio deixado pelo patriarca valeria 3,6 milhões de reais. A cifra é considerada pelos advogados de Bruna uma pequena fração da verdadeira fortuna de Roger. Em julho, Bruna entrou com um pedido na 1ª Vara de Família de São Paulo para exigir a apuração dos bens e valores. Em novembro, na mais recente atualização do caso, a família Haber fez um ajuste no inventário: acrescentou um conjunto comercial no Itaim e algumas doações em dinheiro, o que elevaria os bens de Roger para 4,2 milhões. A parte de Bruna, nesses termos, valeria 525 000 reais. Para seus advogados, existe “uma complexa e intrincada fraude” para afastá-la do espólio do pai.

Documentos anexados ao processo mostram que, ao longo da vida, Roger teria colocado uma parte significativa de seu patrimônio — pelo menos quinze imóveis em bairros como Itaim, Jardins e Pinheiros — em nome da Romipar, depois rebatizada de Zenith. As empresas tinham como donos fundos offshore, por sua vez controlados por outras offshores, todas sediadas em paraísos fiscais como as Ilhas Virgens Britânicas e o Panamá.

Fachado do prédio onde morou a família Haber
Família Haber: o prédio onde morou o casal (Reprodução/Divulgação)

Em 2016, quando um programa da Receita Federal permitiu a repatriação de recursos não declarados no exterior, Myrian teria nacionalizado cotas dessas offshores em seu nome, declarando tê-las recebido como herança de Roger. Nos anos seguintes, as offshores — e outros eventuais controladores da Zenith — cederam o restante das cotas à viúva, que assim se tornou a única dona dos imóveis. Como isso aconteceu após a morte de Roger, os valores não entrariam na herança do marido. “É como se esse patrimônio tivesse sido construído apenas por Myrian, não pelo casal, o que sabemos não ser verdade”, afirma Thaísa Teixeira, advogada de Bruna.

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Nos últimos anos, Myrian vendeu pelo menos doze desses imóveis por cerca de 41 milhões de reais, segundo as matrículas anexadas ao processo. Além de pleitear parte desse dinheiro, a defesa de Bruna questiona o valor das negociações. “O preço de mercado dos apartamentos, segundo perícia, era de 56 milhões”, diz Thaísa. Também estão em disputa 40 milhões relativos a aluguéis recebidos nesses endereços, de acordo com a defesa.

Bruna quer ainda sua parte de uma luxuosa propriedade de 7 200 metros quadrados em Campos do Jordão, que está em nome de Roger, mas não consta na lista de bens a ser divididos — o inventário é administrado pela filha Claire, 52. Também almeja seu quinhão de uma respeitável coleção de obras de arte, em que figuram nomes como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Candido Portinari. Por fim, os advogados buscam possíveis quantias deixadas pelo empresário no exterior. “Não chegamos ao valor total do patrimônio, mas é muito superior a 4,2 milhões. A família tem um padrão de vida nababesco”, diz Thaísa.

Quatro fotos de intregantes da famílai Haber
A família Haber, acusada por Bruna de ocultar parte da herança: em sentido horário, Claire, Eduardo, Myrian e Roger (Reprodução/Divulgação)

 

Bruna nunca teve contato com os Haber. Na infância, recebia do pai uma ajuda informal de 800 reais por mês, normalmente entregues por um taxista que fazia serviços para Roger. Após o teste de DNA, passou a ganhar uma pensão mensal de 5 000 reais, aos poucos aumentada para 10 000. O dinheiro permitiu que ela concluísse os estudos em um colégio particular, o Rio Branco, na unidade da Granja Vianna. Depois, fez um ano de administração na PUC, mas abandonou o curso. Agora, presta vestibular para psicologia. Desde outubro, com o acirramento da disputa judicial, os pagamentos mensais teriam sido interrompidos. Bruna alega ter feito empréstimos de 12 000 reais para pagar as contas da modesta casa alugada onde mora com a mãe e uma tia afetiva, em Cotia.

“A família nunca quis se relacionar com a Bruna. Nem mesmo queriam que ela usasse o sobrenome Haber”, diz a escritora Paula Guterres, 42, que foi casada com Richard, filho de Roger morto em 2016, vítima de câncer no cérebro. “Eles sempre tiveram um padrão de vida muito, muito alto. Todas as casas tinham governanta, arrumadeira, passadeira, faxineira. Os motoristas é que faziam o supermercado.” Os dois filhos menores de idade de Paula e Richard também estão na Justiça contra a família. Buscam anular um testamento assinado pelo pai quando ele já estava doente e, segundo Paula, sem juízo perfeito. “Tanto nossos filhos quanto Bruna vivem há dez anos privados da herança. É muito triste o que a família faz”, afirma Paula.

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Texto com a sentença em que o casal Haber foi réu
Caso na justiça: parte da sentença que condenou Paulo Maluf, no processo em que Roger e Myrian foram réus (Reprodução/Divulgação)
Trechos de documento quanto Bruna ainda usava o antigo nome
Disputa pela herança: trechos do pedido dos advogados de Bruna, ainda redigidos quando ela usava o antigo nome, Daniel (Reprodução/Divulgação)

Nem os Haber nem os advogados que os representam aceitaram falar à reportagem. A família aparenta ainda manter a vida luxuosa. Myrian, Claire e o irmão Eduardo, 47, são fotografados em recepções elegantes, passam temporadas fora do país e participam de leilões beneficentes de instituições como o Hospital Albert Einstein. O prédio de Myrian, no Jardim Paulista, tem apartamentos avaliados em 7 milhões de reais. Segundo Bruna, eles a procuraram, ao longo dos anos, para tentar acordos, que iriam de 3 milhões a 13 milhões de reais. “Não aceitei. Quero que a Justiça diga o que é meu”, ela diz.

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No fim de 2019, pela primeira vez, Bruna esteve pessoalmente com alguém da família. Ela atravessava a pé a Rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, quando Claire — a filha que administra o inventário — passou de carro e a reconheceu. As duas tiveram uma conversa rápida, mas amistosa. Tomaram um café dias depois, no Shopping Eldorado. “Ela foi simpática. A Claire aceita bem a questão da transgeneridade, já apoiou campanhas nas redes sociais, tem amigos que estudam o tema”, conta Bruna. “Acredito que a briga judicial não tenha a ver com isso, mas com a própria herança.” Semanas depois, quando a investigação sobre os bens começou, a meia-irmã deixou de responder a ela. “Fiquei triste. Cheguei a imaginar que tinha ganhado uma família maior, como sonhava”, diz.

Brigas de parentes à parte, resta a questão: o dinheiro que Bruna quer é lícito? Os advogados, é claro, respondem que sim. “São imóveis e valores legais, reconhecidos pelo Estado e declarados em imposto de renda”, diz Thaísa. Roger e Myrian chegaram a virar réus nas apurações sobre lavagem de dinheiro. A acusação contra o patriarca se extinguiu após sua morte; no caso de Myrian, o processo prescreveu.

“É claro que (esse contexto) dá uma certa culpa, mas não posso abrir mão dos meus direitos”, diz Bruna, questionada sobre a legitimidade do dinheiro. Seus planos, caso consiga a bolada que imagina, são comprar uma casa para a família em Cotia e montar um consultório de psicologia em São Paulo. “Também quero abrir uma empresa”, ela conta. “De maquiagem, que, depois da psicologia, é minha segunda paixão.”

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Publicado em VEJA São Paulo de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719

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