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Chacina revela relação entre torcidas organizadas e facções criminosas

O assassinato de oito corintianos na Pavilhão 9 é a mais nova evidência das conexões perigosas entre os bárbaros das arquibancadas e o crime organizado na cidade

Por Silas Colombo e João Batista Jr.
Atualizado em 1 jun 2017, 16h55 - Publicado em 25 abr 2015, 00h00
Pavilhão 9
Pavilhão 9 (Fernando Neves/Folhapress/)
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Com o símbolo do Corinthians tatuado no lado esquerdo do peito e a disposição de levar a paixão futebolística às últimas consequências, o feirante Fábio Neves Domingos, de 34 anos, ia quase diariamente à quadra da Pavilhão 9, um galpão embaixo da Ponte dos Remédios, ao lado da Marginal Tietê, na Zona Oeste. “Dumemo”, como era chamado pelos colegas (quando alguém lhe perguntava como estava, respondia sempre “do mesmo jeito”), trabalhava como vendedor em uma barraca de legumes de um comerciante na Vila dos Remédios, bairro onde morava. Faltava ao serviço com frequência para acompanhar o Timão em viagens, muitas vezes ao exterior. Complementava a renda mensal com bicos na descarga de caminhões de hortaliças na Ceagesp. A dedicação à torcida organizada cujo nome homenageia uma das alas do extinto Presídio do Carandiru rendeu-lhe duas glórias. Ali, conheceu Vanessa Marques, com quem se casou. Conquistou também o respeito dos companheiros e assumiu a presidência da entidade entre 2012 e 2014.

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Nas arquibancadas, era conhecido por não fugir de brigas. Apareceu entre os protagonistas de duas grandes confusões recentes nos campos. Em 2013, passou 106 dias atrás das grades em Oruro, a 230 quilômetros de La Paz, ao lado de outros onze parceiros de arquibancada, todos suspeitos de atirar o foguete que atingiu e matou Kevin Spada, um boliviano de 14 anos, durante uma partida da Copa Libertadores da América. Dois meses depois de libertado, apareceu trocando socos com vascaínos e policiais durante uma peleja do Campeonato Brasileiro no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Depois da briga, ficou proibido de pôr os pés em um estádio durante noventa dias, mas não parecia se importar muito com esse tipo de problema. “Sou Corinthians até morrer”, repetia.

Essas palavras soam hoje tragicamente proféticas tendo em conta a chacina que ocorreu no sábado (18) na sede da Pavilhão 9. Fábio e outros sete corintianos morreram executados com tiros de pistola 9 milímetros no fim da noite daquele dia. Os criminosos (ainda há dúvida se três ou mais participaram da ação) obrigaram as vítimas a se ajoelhar e depois deitar no chão, enfileiradas. A maior parte dos disparos ocorreu na cabeça, atrás da nuca. Passava pouco das 23 horas quando os bandidos, fingindo-se de policiais, entraram na quadra onde torcedores estavam fazendo um churrasco e retocando as bandeiras que levariam à Arena Corinthians, em Itaquera, no domingo, dia da semifinal do Campeonato Paulista, contra o Palmeiras. “Junta todo mundo aqui”, ordenou um dos invasores.

Enquanto descarregavam as armas no grupo, deixaram em uma sala dos fundos o faxineiro do local, que acabou sendo poupado. “Fiquei amarrado em uma faixa da torcida”, contou a testemunha para os investigadores do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Antes de desmaiar durante o tiroteio, ele conseguiu gravar bem o rosto e o perfil de dois dos assassinos. “Eram ‘alemães’”, afirmou aos policiais, referindo-se aos homens com cerca de 1,60 metro de altura e cabelos lisos bem claros. 

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Mesmo atingida, uma das vítimas ainda conseguiu caminhar até a loja de conveniência do posto de gasolina do outro lado da rua para pedir socorro. “Não me deixe morrer, tenho filhos para criar, chame um médico”, repetiu várias vezes o compositor de sambas Mydras Schmidt Rizzo, de 38 anos, para um dos frentistas. Sangrando bastante devido a quatro perfurações de bala (no ombro direito, nas costas, no maxilar esquerdo e na coxa direita), ele esperou o resgate por vinte minutos. Deu entrada no Hospital das Clínicas, mas resistiu pouco tempo. Os outros morreram na Pavilhão 9.

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Ao analisar o caso, a polícia rapidamente descartou uma rixa de arquibancada como a motivação da chacina. “A possibilidade mais forte é o envolvimento de uma das vítimas com o tráfico de drogas”, afirma o delegado Luiz Fernando Lopes Teixeira, do DHPP. Segundo a suspeita, os criminosos teriam ido à quadra acertar contas com Fábio “Dumemo” e acabaram matando os outros sete que estavam por perto. De acordo com os depoimentos colhidos durante o início da investigação, há cerca de um mês o feirante contou a conhecidos que fora preso na cidade com uma carga de cocaína em uma blitz. Para que fosse liberado, teria deixado o produto e algum dinheiro nas mãos de policiais. Sem a mercadoria, dizia ter ficado com uma dívida de 10 000 reais com traficantes.

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Pessoas próximas ao torcedor afirmaram no DHPP que ele atuava, por conta própria, revendendo drogas nos quarteirões das redondezas da Ceagesp. A ação teria provocado um conflito com os fornecedores de crack da área, que seriam membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). A hipótese de vingança pela disputa de ponto foi reforçada por profissionais do Departamento de Narcóticos (Denarc) que vêm monitorando as conversas telefônicas de membros da facção criminosa baseados na região da Ceagesp. Em um desses “grampos”, realizado dois dias após os assassinatos, dois bandidos do PCC comentam o episódio e citam o nome de dois executores. Até a tarde da última quinta (23), os homens do DHPP estavam atrás da dupla de suspeitos.

Surgidas na cidade no fim dos anos 60, as torcidas organizadas foram se multiplicando nas décadas seguintes. À medida que ganhavam mais membros e influência dentro dos clubes, também se tornaram mais ferozes em campo, protagonizando inúmeras cenas de selvageria dentro e fora dos estádios. Além de afastarem das arquibancadas muitos fãs de futebol, viraram um problema de segurança pública da capital. Assustam agora as evidências de que esses bandidos tenham criado conexões com os bandidos profissionais do PCC para efetuar atividades ilícitas como a venda de drogas, possível estopim da tragédia da Pavilhão 9.

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Ponte Preta
Ponte Preta ()

A chacina na quadra não foi o único episódio recente no qual os torcedores e a facção criminosa apareceram juntos no noticiário policial. Em dezembro de 2014, o presidente da Torcida Jovem, da Ponte Preta de Campinas, Audney Pereira Simeoni, o Tatu, foi preso por associação ao tráfico. Seu antecessor, Romildo dos Santos, também acabou condenado pelo mesmo motivo. Ambos cumprem pena no momento e teriam agido em parceria com o PCC. A influência da facção criminosa no ambiente das organizadas iria além da lucrativa parceria comercial na venda de drogas. Chegaria a ponto de determinar às agremiações novas normas de comportamento, como evitar brigas e o uso de armas de fogo nos conflitos entre torcidas rivais.

Segundo o promotor Paulo Castilho, do Juizado Especial Criminal, que cuida de assuntos ligados ao esporte, isso ficou claro em uma reunião ocorrida em março de 2012, quando dois integrantes da Mancha Alviverde, do Palmeiras, morreram em confronto com a Gaviões da Fiel, do Corinthians, na Zona Norte. O encontro teria sido promovido por membros do PCC e contado com a presença de vários diretores de organizadas. “O objetivo da facção é evitar a todo custo chamar a atenção da polícia para as atividades ilícitas que ocorrem nas quadras das torcidas”, explica Castilho. No caso de 2012, Rodrigo de Azevedo Lopes Fonseca, presidente da Gaviões, acabou enquadrado nos crimes de homicídio e formação de quadrilha. Pode pegar mais de dez anos de cadeia.

Marcha Verde
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Foram inúmeras as tentativas de extinguir e sufocar o poder das torcidas. Todas fracassaram. Em 1995, o Ministério Público conseguiu a extinção da Mancha Verde e da Independente, depois que Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos, foi morto a pauladas em um confronto entre as torcidas do Palmeiras e do São Paulo. Na prática, nada mudou. Em 1997, os palmeirenses criaram a Mancha Alviverde, a mesma facção com nome e razão social diferentes. No ano seguinte, os sãopaulinos recorreram à mesma artimanha e fundaram a Torcida Tricolor Independente. Em 2003, uma nova esperança frustrada, com a entrada em vigor do Estatuto do Torcedor. Ele prevê que, nos casos mais leves, os brigões fiquem sujeitos a pagar multa e sejam obrigados a se afastar dos estádios por um tempo determinado (de três meses a até três anos). Segundo a Federação Paulista de Futebol, 24 pessoas no estado cumprem essa pena no momento, um número ínfimo diante do nível de violência existente. Nos casos extremos, os processos podem resultar em penas de um a dois anos de prisão.

O órgão encarregado desses julgamentos é o Juizado Especial de Defesa do Torcedor. Atualmente, tramitam por lá 39 processos. Desse total, quase metade envolve membros de torcidas organizadas. É consenso entre os especialistas que o Estatuto do Torcedor não avançou o suficiente no objetivo de conter a violência. Um dos poucos dirigentes dessas entidades que acabaram na cadeia é Carlos André Amorosino Júnior. Em 2007, o integrante da Torcida Independente foi condenado a catorze anos de prisão pela morte do palmeirense Mauro Roberto Costa, ocorrida em 2003.

Uma nova tentativa de ação quer conseguir resultados melhores nessa área. Um anexo da Vara Criminal a ser criado nas próximas semanas terá como única atribuição investigar e julgar os bárbaros do futebol. Hoje, os crimes que acontecem em estádios — de briga a destruição de bens públicos — não são concentrados em um único juiz e as investigações ocorrem de forma muito morosa, devido a questões burocráticas. O departamento especializado ficará sob o comando do juiz Ulisses Pascolati Jr. e do promotor Paulo Castilho.

juiz Ulisses Pascolati Jr. e o promotor Paulo Castilho
juiz Ulisses Pascolati Jr. e o promotor Paulo Castilho ()

“Podemos dizer que 80% dos delitos que envolvem torcidas organizadas são promovidos por réus primários, ou seja, gente sem passagem pela polícia que se exalta no estádio e acaba extrapolando no papel de ‘valentão’”, diz Pascolati Jr. “No entanto, os outros 20% podem ter ligações bem mais sérias com outras facções de bandidos. Agora, teremos autonomia para quebrar o sigilo bancário e telefônico de torcidas e de seus membros para saber a origem do dinheiro que circula nas quadras, por exemplo.”

A expectativa é que o anexo especial passe a funcionar em duas semanas. Segundo Castilho, há torcidas que faturam enormes somas de dinheiro por ano — daí o interesse do PCC em fazer uma associação, uma vez que poderia usar suas contas para lavar dinheiro. “Em 2015, a Gaviões da Fiel, por exemplo, deve obter uma receita de cerca de 10 milhões de reais com a venda de roupas e ingressos e a organização de caravanas e festas. É muita movimentação financeira e pouca fiscalização.” 

Colaborou Jussara Soares

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